Jornalismo, profissão de acesso aberto
SESSÃO 2
ENSINO, ACESSO À PROFISSÃO
E FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Em defesa do acesso aberto e à profissão e do
Jornalismo qualificado e livre
ALFREDO MAIA (CP N.º 684)
SÍNTESE
O perfil de jovem jornalista
pretendido por muitas empresas insere-se na deriva tecnológica na indústria da
informação que tende a privilegiar a futilidade em detrimento do espírito
crítico. Não está em causa a liberdade de ensinar e de aprender, mas é
necessário travar a pressão dos estágios curriculares e dos estágios
profissionais. Não pode haver dúvidas: o estágio de acesso à profissão
corresponde à primeira fase da carreira profissional. E o acesso à profissão
deve continuar a ser aberto.
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1.
Comecemos pelo princípio. Quem detém o poder para decidir quem entra, quem sai
e quem se mantém na profissão?
Na
realidade, são as empresas quem decide tudo isso. E também quem determina os
perfis profissional a recrutar e a manter.
Cultura
geral, curiosidade pelo mundo, escrever bem e com adequada destreza, vocação,
ou pelo menos “jeitinho”, são requisitos que começam a pertencer ao passado.
Exigências
em voga visam a utilização de todas as virtualidades das tecnologias da
informação num regime de jornalismo canivete-suíço. Um curso de Jornalismo ou
Ciências da Comunicação ajuda – a formação multimédia está incluída no pacote.
A verdade
estatística é que nunca como hoje os jornalistas foram tão qualificados.
Segundo os dados preliminares do último perfil do jornalista elaborado pelo
ISCTE[1], 79,6%
dos inquiridos apresentam como habilitações literárias pelo menos a frequência
do ensino superior.
Parece
ser uma boa notícia. Os profissionais estarão hoje mais apetrechados com
competências técnicas e científicas a servir melhor o interesse público e a
valorizar o Jornalismo ao serviço dos cidadãos.
A deriva
tecnológica na indústria da informação e o modelo de turbo-jornalismo – vídeos
“virais” sem conteúdo útil, textos instantâneos, directos estéreis, futilidade
quanto baste –tendem a privilegiar as capacidades meramente operativas e a
negligenciar as de reflexão e a cercear o juízo crítico.
É
possível que estas palavras possam resultar injustas, mas radicam numa
preocupação genuína e legítima quanto aos descaminhos para onde nos
empurram.
Seria útil
reflectir sobre o perfil de jovem profissional prontinho a usar pretendido
pelas empresas e que modelo estamos dispostos a defender. Nesse sentido, é
importante recordar o papel dos conselhos de redacção na discussão das opções
de recrutamento e no parecer sobre a admissão de jornalistas.
2.
Pretende-se colocar em discussão o princípio do acesso aberto à profissão,
historicamente tão caro ao nosso Sindicato.
A própria
organização do Congresso coloca expressamente a questão: “O acesso à profissão
deve ser condicionado à formação específica na área?”.
Não, não
deve.
A
vantagem essencial do acesso aberto reside na enorme variedade de formações,
proveniências dos jornalistas – da História, Línguas e literaturas, Filosofia,
Direito e Sociologia, às engenharias, Economia, Geografia, Biologia, Medicina…
e Jornalismo, mas também por outros percursos e experiências, não
necessariamente com diploma académico.
É essa
diversidade que enriquece as redacções com um vasto leque de saberes e de
competências, tornando-as aptas a responder às necessidades da emergência
noticiosa, tematicamente tão atomizada que exige uma capacitação – pelo menos
colectiva – quase enciclopédica.
É
importante recordar a velha e prudente posição do nosso Sindicato, segundo a
qual os jornalistas devem ser o mais qualificados possível, seja qual for a
área, e preparar-se para o cada vez mais exigente exercício da profissão, sem
fechar a porta aos que não tiveram a oportunidade ou as condições para concluir
os seus estudos.
Não
esqueçamos que o SJ está historicamente ligado ao ensino do Jornalismo de nível
superior e é fundador e outorgante do Centro de Formação Profissional para
Jornalistas (Cenjor) – estrutura prestigiada, cujo papel deve ser recentrado no
papel essencial de reciclagem e de formação contínua dos jornalistas.
3. Nas
últimas duas décadas, especialmente com a abertura da actividade do ensino
superior à iniciativa privada e com o alargamento da oferta formativa do
sistema politécnico (com maior descentralização no país), a disponibilidade de
diplomados em Jornalismo e Ciências da Comunicação tornou-se super-abundante.
Analisando-se
o índice de cursos da Direcção-Geral do Ensino Superior para efeito de acesso
ao ano lectivo em curso[2],
verifica-se que em 25 instituições dos sistemas universitário e politécnico,
públicos e privados, o número de vagas nesta área superou as 1200.
Admitindo
a hipótese de o volume de diplomados corresponder a uma taxa de conclusão de
cursos da ordem dos 60% de uma média anual de 1200 inscritos, podemos estimar
em 720 o número anual de licenciados.
Tendo em
conta que a idade média dos jornalistas é de 39,9 anos[3], e
considerando a tendência de redução dos quadros, com a consequente escassez do
mercado de trabalho, não é possível um fluxo de recrutamento correspondente ao
volume de anual de licenciados, quanto mais acomodar o enorme “stock” que
permanece sem emprego.
No
entanto, as contingências no mercado de trabalho, que não descartam a esperança
de alterações positivas num futuro que pode até ser próximo, mormente através
de projectos alternativos, não podem pôr em causa a liberdade de aprender e de
ensinar, nem e o direito a escolher a formação superior que satisfaça as
necessidades intelectuais de cada e o torne um cidadão mais capaz.
Mas não
se espere que seja a indústria da Informação a salvar a indústria da formação.
4. É
neste quadro que devemos discutir o problema do estágio curricular, que não
pode confundir-se com o estágio legalmente exigível para a obtenção do Título
Profissional de Jornalista e início da profissão, previsto no Estatuto do
Jornalista[4] e no
regime de organização e funcionamento da Comissão da Carteira Profissional de
Jornalista[5] e pelos
instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho (IRCT).
O
primeiro, nem sempre obrigatório para conclusão de ciclo de estudos, carece de
regulamentação e caracteriza-se por um quadro de excessiva informalidade, mesmo
quando as instituições de ensino celebram protocolos com as empresas,
entregando os estudantes à completa exploração do trabalho gratuito e ilegal,
em vez de proporcionar-lhes um adequado e profícuo período de observação da
realidade prática nas redacções.
O segundo
corresponde ao período inicial da carreira profissional, com a prestação de
trabalho em níveis progressivamente exigentes e como categoria reconhecida,
remunerada e compensada em todas as componentes resultantes dos direitos e
deveres emergentes da efectiva relação de trabalho – salário base, dias de
descanso e férias pagos, férias pagas e respectivo subsídio, 13.º mês, trabalho
suplementar, etc.
(De facto, dispõe o n.º 1
do Art.º 6.º do Dl .º 70/2008: “A profissão de jornalista inicia-se com um
estágio que se realiza em regime de ocupação principal, permanente e
remunerada”.)
O
primeiro, praticado nos moldes degradantes que podemos observar, com variantes
mais ou menos suavizadas, corresponde a uma fase inicial de um caminho tantas
vezes interminável de precariedade e de trabalho sem direitos.
O segundo
inicia o jovem jornalista numa carreira profissional exigente, na qual os
pesados deveres constituem um estribo essencial para a afirmação de direitos e
sua defesa colectiva em condições de maior liberdade e autonomia.
5.
Ultimamente, muitas empresas estão a contratar jovens em regime de “estágio
profissional”, cuja legalidade levanta pelo menos sérias reservas no caso do
Jornalismo, e cujas práticas são susceptíveis de configurar utilização
ilegítima de trabalho.
De facto,
a Portaria n.º 2004-B/2013, de 18 de Junho, prevê “o desenvolvimento de uma
experiência prática em contexto de trabalho”, por um período de 12 meses,
fazendo tábua rasa dos regimes jurídico e convencional já referidos.
O diploma
estabelece que o estágio “não pode consistir na ocupação de postos de
trabalho”, mas a prática mostra que os jovens nestas condições produzem
efectivamente trabalho destinado a publicação, substituindo profissionais.
Uma vez
que não limita o recurso reiterado a tais “estagiários”, tal regime
institucionaliza e subsidia a precaridade no Jornalismo, perpetuando e
aprofundando o problema.
São estes
caminhos e estas derivas que é urgente alterar.
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[1]
Publicados em http://jornalistas.eu/?n=9672
[2]
Fonte: http://www.dges.mctes.pt/guias/indarea.asp?area=IX
[3]
De acordo com o estudo do ISCTE já referido na nota 1
[4]
Lei n.º 1/99, de 13 de Janeiro, alterada e republicada pela Lei n.º 64/2007, de
6 de Novembro
[5]
Decreto-Lei n.º 70/2008, de 15 de Abril