Assalto à última trincheira da liberdade?
Será útil assentarmos desde já no seguinte: os jornalistas
são trabalhadores por conta de outrem, assalariados mais ou menos precários mas
geralmente subordinados a uma hierarquia que o patrão estabeleceu, escolheu e
mantém enquanto merecer a sua confiança. As excepções são estatisticamente
negligenciáveis para o que agora importa discutir.
Pelo menos formalmente, os jornalistas gozam das garantias
constitucionais da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e do
pluralismo. Mas as liberdades estão de algum modo limitadas pelos estatutos
editoriais dos órgãos de informação aos quais eles prestam serviço, pelas
orientações e pela disciplina editorial determinada pelas respectivas
hierarquias editoriais – essas mesmas, as escolhidas pelos donos através de um
sistema de delegação de confiança em cascata: os accionistas escolhem os
directores; os directores escolhem os chefes de redacção, os editores de
secção…
Ao contrário do que muitos leitores, ouvintes e espectadores
poderão imaginar, de um modo geral os jornalistas não gozam de autonomia
editorial nem sequer para escolher as áreas e os temas que tratam, nem são eles
a decidir, pelo menos em última instância, o que é notícia. É à hierarquia, mais
ou menos complexa, de acordo com a dimensão e/ou o modelo organizativo, que
cabe estruturar as redacções, geralmente por áreas temáticas, bem como alocar a
cada uma delas determinado conjunto de profissionais, coordenados por um
superior hierárquico directo.
É a hierarquia editorial que distribui tarefas e aceita, ou
não, as sugestões de trabalhos e estabelece as prioridades, atribui os espaços
e define os destaques. Nalguns casos (os jornalistas queixam-se de tratar-se de
casos a mais, com prejuízo da autonomia técnica que deveria ser-lhes
reconhecida) são as chefias a determinar a orientação concreta das notícias e
reportagens – os ângulos de abordagem, os pormenores a valorizar ou a
desvalorizar, as perguntas a fazer, as pessoas «certas» a ouvir…
É útil termos presente esta descrição chã e simplificada da
organização e funcionamento das redacções, para compreendermos as tensões de
poder no seio destes organismos e as limitações e constrangimentos que elas
produzem, com consequências necessariamente na qualidade da informação
disponibilizada ao público. Mas também tomarmos consciência de que os próprios
modelos e culturas organizativas traduzem dinâmicas inibidoras de uma expressão
mais ampla da diversidade de opiniões no interior das redacções.
De um modo geral, e sem prejuízo do reconhecimento do mérito
próprio nalguns casos, são as relações de poder interno que justificam o acesso
ao monopólio da opinião, com direito a coluna regular, habitualmente dividido
pelos detentores dos cargos de topo e intermédios da hierarquia, por um ou
outro redactor, os quais, juntamente com colunistas externos, constituem a
elite editorial.
É essa elite que, com frequência, ocupa simultaneamente
espaços de opinião nos principais jornais e revistas, possui lugar cativo de
comentário na rádios e nas televisões, determina as tendências, desenha o
consenso sobre os principais temas e projecta uma agenda comum da actualidade –
salvo algumas honrosas excepções.
Neste contexto, a maior parte dos jornalistas não tem acesso
a esse clube, seja pela natureza restritiva resultante das relações de poder e
de confiança, seja também pela compreensível escassez de espaço útil.
Não admira, por isso, que inúmeros profissionais tenham
encontrado no espaço público democratizado pela gratuitidade dos meios
electrónicos, uma espécie de trincheira da liberdade de expressão,
alimentando blogues e perfis em meios sociais, ora retransmitindo criações suas
produzidas para os meios onde trabalham, ora publicando textos e imagens
produzidos no âmbito da sua liberdade de criação, de opinião e de difusão.
É uma prática que a própria elite com o privilégio da
opinião nos media muito valoriza
também, replicando as suas colunas, utilizando-a como plataforma adicional para
intervenções supletivas, por vezes mais acutiliantes, ou versando temas
diversos daqueles que habitualmente tratam.
Uns e outros fazem assim uso de uma liberdade protegida pela
Declaração Universal dos Direitos do Homem[1] e pela Constituição da
República[2] que nem sequer o malfadado
Código do Trabalho põe em causa, já que os poderes de direcção e disciplinar do
empregador estão limitados à organização do trabalho, não podendo estes
prejudicar a liberdade de expressão e de opinião e de divulgação do pensamento
e da opinião[3].
Por conseguinte, é de estranhar que, entre os jornalistas,
haja quem proponha o estabelecimento de restrições à utilização de meios
sociais, designadamente para expressar opiniões próprias, para subscrever
opiniões de terceiros ou para manifestar apoio a posições, propostas e
correntes de pensamento, políticas, religiosas e outras. Uns poucos, com acesso
às colunas de opinião e aos espaços de comentários nos media, passariam
a deter em definitivo o exclusivo da opinião; os restantes, a maioria, veria
capturado o que resta da sua liberdade.
A tendência regulamentista, em nome da preservação da
«independência» dos jornalistas e, sobretudo, para não comprometer a
«independência» dos órgãos para os quais trabalham, está fazendo caminho e
receia-se que desague no congresso convocado para o próximo fim-de-semana, em
cujo programa se enuncia a questão «Como conciliar o exercício profissional com
blogues e páginas pessoais de jornalistas profissionais em redes sociais?».
O tema não pode ser tabu, mas aconselha toda a prudência,
sob pena de lançar os jornalistas numa deriva «purificadora» e de verdadeira
captura do derradeiro reduto de expressão da liberdade dos seus próprios
camaradas. Se tal acontecer, será uma enorme tragédia para o Jornalismo e
sobretudo para a Democracia.
A questão não é isolada – e porventura não é inocente –,
compaginando-se com outras lançadas para um debate, que se espera franco e
democrático, que causam legítima inquietação, girando em torno de ideias
aparentemente consensuais, como a «independência individual dos jornalistas» e
de eventuais propostas de revisão do regime de incompatibilidades da profissão,
talvez incluindo nelas a participação cívica e política, e até de previsão
legal dos «conflitos de interesses».
Há quem proponha até que os jornalistas declarem
regularmente os seus «interesses» – todos, dos económicos próprios e de
familiares, filosóficos, ideológicos, partidários, religiosos – numa espécie de
ecografia pública capaz de perscrutar até ao mais ínfimo átomo das nossas
consciências e fixar indelevelmente um retrato moral a escrutinar sabe-se lá
por quem.
Mas não há dúvidas de que tais derivas, se não forem
travadas pelo bom senso, pela prudência e pela sã camaradagem da diferença e da
diversidade, sê-lo-ão pelo menos em razão da inconstitucionalidade e pela
ostensiva agressão aos direitos, liberdades e garantias dos quais os
jornalistas não estão desapossados.
Publicado originalmente em AbrilAbril
[1] Artigo 19.º
da DUDH – Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o
que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de
procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e
ideias por qualquer meio de expressão.
[2] Artigo
37.º, n.º 1 da CRP – Todos têm o direito
de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou
por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de
ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
[3] Artigo 14.º
do CT – É reconhecido, no âmbito da empresa, a liberdade de expressão e de divulgação
do pensamento e opinião, com respeito pelos direitos de personalidade do
trabalhador e do empregador, incluindo as pessoas singulares que o representam,
e do normal funcionamento da empresa.