Da ruptura dos Media com o mundo do Trabalho



Num editorial recente[1], o jornal “i” interrogava-se, em título: “Afinal, os estivadores tinham razão?”. Afinal, não havia razões para o longo “braço de ferro” no Porto de Lisboa, que fazia perder 100 mil euros por dia, quando “um dos pontos centrais era um ordenado mínimo – e penso que muito justo – de 850 euros” e era “legítimo que os atuais trabalhadores se recusassem a aceitar a concorrência de novos empregados com remunerações bem mais baixas”.

O caso remete-nos para o problema da ruptura dos Media com o mundo do Trabalho e a vida sindical, muito importante na batalha ideológica da qual os meios de comunicação social são um instrumento decisivo.

Tal ruptura traduz-se na omissão sistemática de problemas, anseios, lutas, propostas e conquistas dos trabalhadores e das suas organizações, bem como na construção e alimentação de preconceitos, distorções e manipulações acerca da importância, do papel e da acção dos sindicatos.

Tal ruptura manifesta-se desde logo na ausência, na generalidade dos órgãos de comunicação social, de suplementos, de páginas ou secções dedicadas ao Trabalho, ou pelo menos de noticiário mais ou menos sistemático dedicado à actualidade laboral e sindical. Que conste, as excepções são o semanário “Avante!” e este AbrilAbril.

Secções de “Trabalho” ou “Trabalho e Sindicalismo” existiram em boa parte dos jornais portugueses até entre meados e o final da década de 1980, cobrindo uma variedade de acontecimentos que ia da “rotina” da negociação colectiva às eleições para os órgãos sociais dos sindicatos, passando pelas greves e outras formas de luta, assembleias gerais e actividades culturais dos sindicatos.

O noticiário económico praticamente não existia e as notícias sobre empresas eram encaradas como publicidade encapotada – e por isso ilícita – e apodadas como “frete” no jargão dos jronalistas, isto é, algo de eticamente censurável.

Com a viragem das privatizações e o capitalismo popular impulsionado pelo cavaquismo, que levou milhares de pequenos aforradores a investir as suas economias na vertigem bolsista entre 1985/86 e 1988, os Media passaram a publicar páginas inteiras sobre a Bolsa, as empresas e os seus resultados, aumentos de capital e outros engulhos.

Os negócios e os interesses do capitalismo passaram a disputar aberta e activamente o espaço noticioso dedicado aos trabalhadores, aos seus problemas, anseios e lutas, bem como às suas organizações. Negócios e interesses do capitalismo venceriam.

Primeiro, foram criadas as secções de Economia (e nasceram jornais “económicos”); depois, extinguiram-se as secções de actualidade laboral e sindical, fosse às escâncaras, fosse sob a justificação da integração desta no noticiário económico – transitória, como se viu.

Em certa Redacção, discutindo-se então a extinção da secção de Trabalho fundindo-a na Economia, um responsável apresentou esta cândida argumentação: se a Economia compreende o Trabalho e o Capital, não faz sentido irem separados.

O problema é que, como preveniram alguns jornalistas, o Capital haveria de impor-se em espaço e em peso editorial, fazendo prevalecer os seus interesses e aniquilando o Trabalho. Consumava-se a ruptura.

Com o mundo do Trabalho fora da rotina noticiosa, a desvalorização dos problemas dos trabalhadores e das suas realizações, o apoucamento e o silenciamento das suas organizações ganharam terreno, aliás fértil em preconceitos, muito resultantes do desconhecimento, mas também produto de entorses.

Numa síntese global das representações mediáticas do patronato, por um lado, e do movimento sindical, por outro, em geral, os patrões, as empresas e as suas associações são sinónimos de investimento e de progresso, ao passo que os trabalhadores representam custos e peso para as empresas e os sindicatos constituem um entrave ao progresso e são fonte de prejuízos.

Numa peça intitulada “Retrato dos sindicatos que mais dores de cabeça dão às empresas”, com o significativo pós-título “Causam danos financeiros e enfurecem a população. É precisamente por isso que fazem parte das forças mais poderosas do país”, o jornal “Público” [2] justificou a “génese” do poder dos sindicatos:

“Um poder que adquiriam pela sua representatividade mas, sobretudo, por serem capazes de virar as empresas do avesso, deixando os aviões em terra, impedindo as compras dos portugueses ou gerando o caos nas estações de comboio. Ou seja, se, por um lado, têm força para fazer exigências às empresas, perdem-na junto da população, que acaba por sair ferida por causa dos seus confrontos”.

Isso ajuda a explicar as razões pelas quais a actualidade laboral e sindical praticamente só é notícia quando as greves “perturbam” as populações e enfadam a elite editorial, “respeitadora” do direito à greve, que “não se discute”, afadigando-se em redobrado e vigilante zelo contra “os prejuízos”, por vezes até à provocação grosseira[3].

Outro elemento distintivo do tratamento dado pelos Media aos empresários e às suas organizações é a indiferença pelos interesses que representam e defendem, ao passo que os sindicatos e os sindicalistas são apresentados com conotações vincadas, para não dizer suspeitas.

Entre numerosos exemplos, podemos citar uma entrevista da revista “Sábado”[4] à coordenadora da Frente Comum da Função Pública, com perguntas como: “As pessoas dizem que a Ana Avoila está ao serviço do PCP no Sindicato. É assim?”

Sintomaticamente, raras são as vezes que um dirigente empresarial é identificado quanto às suas ligações partidárias. E não consta que alguma entrevista tenha questionado os interesses que realmente representa.

(Publicado em AbrilAbril)





[1] Editorial de 2 de Junho de 2016
[2] Edição de 28 de Março de 2010
[3] Como exemplo, veja-se a manchete do jornal “i” de 24 de Novembro de 2011, dia de greve geral (“Bom dia Portugal e bom trabalho”) e especialmente o respectivo editorial.
[4] Edição de 5 de Dezembro de 2013


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