O 25 de Novembro a Norte
Ocorreu-me
um dia que, se tivesse de mudar de ofício, me seria muito agradável e
gratificante tornar-me guardador de estátuas. Pensava, então, nas estátuas e
bustos que conferem dimensão tangível à memória do mérito cultural, da
generosidade cívica, da abnegação fraterna e do sacrifício sem limites, até da própria
vida.
Sem
grande esforço, poderia sugerir uma representativa galeria de obras que nos
transportam muito para além do recorte físico e da textura dos materiais e nos
conduzem ao significado das vidas e das personalidades perpetuado no espaço
público.
Bem
entendido, só poderia ser um guardador de estátuas virtuosas, e não das que
atravessaram a noite de outros tempos, ou das que, pela calada da indiferença e
da nossa desatenção, foram sendo plantadas de mansinho em praças e jardins, num
cínico ajuste de contas, com beneplácito autárquico e condescendente branqueamento.
E
muito menos das que, representando personagens de sinistra memória, em teimosia
revanchista e contra o protesto popular, nos foram impostas.
É
o caso da estátua do cónego Melo, colocada numa rotunda de Braga em 10 de
Agosto de 2013, véspera do 38.º aniversário dos ataques às sedes do PCP, do MDP
e da União dos Sindicatos de Braga, a 11 de Agosto de 1975.
Foi
– e continua a ser – uma provocação e o cúmulo do branqueamento de uma figura
consabidamente associada ao tenebroso MDLP e à onda de violência com que a
extrema-direita procurou travar a marcha da Revolução, com recurso ao
terrorismo bombista.
Com
a agravante de ter sido caucionada pelo Partido Socialista, o único a aprovar a
cedência municipal do espaço. Nem os vereadores do PSD, nem mesmo os do CDS
acompanharam a então maioria autárquica.
Curiosamente
o mesmo CDS que, alguns dias após a morte do famigerado clérigo, procurara
fazer passar na Assembleia da República (sessão de 2 de Maio de 2008) um voto
de pesar em cujo texto original constava este parágrafo:
“Em 1975, teve um papel decisivo na luta
pela preservação das liberdades e pela instauração de uma democracia
parlamentar”.
Para
evitar o voto contra do PS – então com maioria absoluta – e permitir que a
proposta passasse com a sua abstenção, embora quatro deputados socialistas viessem
a votar a favor e muitos a ausentar durante a votação, foi acordada entre as
duas bancadas a supressão de tão descarada provocação.
Acontece
que, por lapso, presume-se que dos serviços da Assembleia da República, o que
ainda hoje consta da acta da sessão[1] é a transcrição integral da primeira
proposta, plasmando para a História
em letra de forma a ilegítima condução do cónego Melo à galeria dos democratas.
Este
incidente singular – e, suponho, desconhecido – no Diário da Assembleia da
República talvez mostre como os acasos também entram na confecção desse manto espesso
que vem recobrindo certas personagens, tecido de ocultações e de ambiguidades e
legitimando a reabilitação cívica.
Por
exemplo, Pires Veloso ganhou direito a busto recente na Praça da República,
descerrado com abrilhantadora homenagem no Quartel-General da Região Militar
Norte e presidida pelo ministro da Defesa, por ocasião do 40.º aniversário da
sua tomada de posse como seu comandante, a 14 de Setembro de 1975.
Na
base da peanha, na face lateral direita, aninhada rente à relva, pode ler-se
numa placa envergonhada: Defensor da
liberdade e democracia / Cognominado “O Vice-rei do Norte”.
Ocorrerem-me
estes casos para deter-me num parágrafo amargo das “Palavras finais” deste
magnífico livro – “O 25 de Novembro a Norte” – com que Jorge Sarabando nos leva
de jornada pelo processo revolucionário no ano de 1975 até ao golpe militar.
Escreve
ele:
“Beneficiando de cumplicidades no poder
político emergente, tinham de livrar os bombistas da cadeia, arranjar destino
para o exército de contratados que não puderam ‘ir buscar os comunistas à cama
e liquidá-los’ ou meter os revolucionários
‘no Estádio da Luz’, e arranjar para si próprios boas soluções de vida,
o que não foi difícil”.
E,
em nota, enuncia os exemplos da estátua do eclesiástico já atrás nomeado e do
comandante do tenebroso MDLP, Alpoim Calvão, reintegrado na Marinha com direito
a lançamento das cinzas fúnebres ao mar a partir de um vaso de guerra.
“Dias
antes”, anota ainda, “tinha falecido o Almirante Vítor Crespo, militar de Abril
e membro do Conselho da Revolução, e tão parcas foram as homenagens e esconsas
as notícias da imprensa”.
O
lançamento desta obra agora em segunda edição reveste uma especial importância,
pela efeméride que assinala e pela extraordinária actualidade que algumas
tensões desse período histórico readquirem no actual momento político, quando estão
lançadas bases institucionais e políticas que possibilitem um decisivo virar de
página.
Um
vasto arsenal de argumentos, procurando contrariar tais possibilidades, e o
recurso a insultos, nomeadamente contra o PCP, multiplica-se desde as hostes da
Direita oficial e da Direita no PS, repercutindo-se, em muitos órgãos de
comunicação social, num festim de adjectivos, afinado pelo diapasão da
intolerância, em editoriais ressabiados, comentários, artigos de opinião e
entrevistas que destilam ódios velhos e tresandam a ajustes de contas.
Como
se fosse necessário, alguns cronistas e comentadores firmam em letra de forma a
sua declaração de anticomunismo militante, a fim de manter vivo o fervor editorial
por um modelo social, económico e político que ungiram como o único aceitável e
brandindo fantasmas terríficos contra as alternativas de esquerda.
Dirigentes
e outros intervenientes políticos, editorialistas, comentadores e entrevistados
permanentes – dos dirigentes patronais e economistas de direita ao
sociólogo-para-todo o serviço – em televisões, rádios e jornais de referência, regurgitam
uma linguagem desbragada, carregada de fel e de chavões. É o PREC de novo, é o “Verão quente” outra vez – por aí fora…
O
recurso a tais chavões insere-se numa prática continuada das evocações mal
informadas, ou deliberadamente distorcidas, dessa fase dramática do processo
revolucionário, como estratégia de diabolização e de segregação, uma espécie de
anátema irrevogável muito suportada nas visões dominantes – ou o “discurso
hegemónico”, para citar Jorge Sarabando – dos acontecimentos e nutrida num
extenso pasto de preconceitos.
Daí
a importância de obras à margem dos circuitos dominantes, como este “O 25 de
Novembro a Norte”, e da decisiva contribuição que Sarabando coloca nas nossas mãos,
justamente no ano em que se assinalam 40 anos sobre um período tão complexo e
difícil.
Militante
antifascista, comunista de longa data, cidadão generosamente empenhado na
transformação social, discreto, de fala serena – com a serenidade clara de quem
escuta para ouvir e observa mais do que fala, que facilmente se reconhece no
tom e no estilo da obra –, Jorge Sarabando não é um narrador distante dos
acontecimentos.
Na
verdade, o autor viveu e testemunhou muitos dos acontecimentos e conviveu
muitos anos com outras pessoas que também viveram esses e muitos outros. No
entanto, não alardeia privilégios de memória e de experiência. Tão-pouco cede à
tentação do discurso na primeira pessoa.
O
que temos nas nossas mãos é o produto da inteligência do discreto observador
participante e da laboriosa pesquisa que completa e aprofunda o estudo dos
acontecimentos.
A
jornada pelo processo revolucionário no ano de 1975, assim como a
contextualização histórica, reflecte – é inegável – um olhar pessoal, mas suporta-se
num vasto, diversificado, plural, sólido e contrastado conjunto de fontes –
nada menos de 46 –, compulsando autores e obras de diferentes matizes e de muitos
distintos engajamentos, entre os quais os testemunhos de destacados
protagonistas, sob a forma de entrevista ou de registo autobiográfico.
O
autor socorre-se igualmente de abundante informação coligida a partir de vários
periódicos da época, destacando-se o extinto “O Comércio do Porto”, tendo mesmo
consultado todas as edições deste diário, joeirando nele os factos relevantes
para a sua narrativa e cotejando-os aqui e ali com outras fontes.
A
opção por “O Comércio do Porto” como fonte de referência para muitos dos factos
sobre os quais se constrói a evocação do período estudado constitui um dos
aspectos interessantes da obra, pela abundância de elementos que nele colheu o
autor e também pela transmutação editorial operada no periódico a partir de meados
do ano.
Em
plena “batalha da informação”, na conhecida expressão de Mário Soares, quer em
torno dos casos “República” e Rádio Renascença, quer no ataque às orientações
editoriais dos “jornais de Lisboa”, ao Rádio Clube Português, à Emissora
Nacional, à RTP e à Rádio Renascença/Lisboa, a imprensa periódica portuense
posicionava-se de distintas formas.
“Os
jornais do Porto ficaram no limbo, mas o Comércio
passaria a servir de porta-voz do MDLP, com articulistas de uma extrema
virulência, como Fernando Barradas”, observa Jorge Sarabando (pág. 83), para
recordar mais para diante que este jornal publicava a agenda semanal do
brigadeiro Pires Veloso.
O
certo é que “O Comércio do Porto” desempenhou um papel crucial na cobertura do
terror bombista que varreu o Norte e também o centro do país a partir de Junho
(embora com duas acções ainda em Maio) pelos operacionais do MDLP e do ELP.
Muito
mais do que uma obrigatória tábua bibliográfica, que atesta a credibilidade da
pesquisa e coloca ao alcance do leitor o escrutínio das informações carreadas
para o livro, o manejo criterioso das fontes confirma o laborioso rigor
empregue na sua elaboração.
Com
o corpus denso e sólido de fontes, e não obstante a leitura comprometida dos
factos, sob um ponto de vista próprio ou mesmo de um lado da barricada (não é
por acaso que o prefaciador, José Viale Moutinho, nos introduz à obra
designando-a “livro-memória e bandeira”), é justo destacar a objectividade do
estudo – não como mero ritual estratégico defensivo, pondo os factos a falar
por si e dissimulando a subjectividade do autor, mas como condição para a
procura da verdade.
Nesse
sentido, assume particular relevo a estrutura expositiva dos acontecimentos, dos
respectivos contextos, implicações e consequências que a obra segue, tanto na
parte introdutória como nos sucessivos capítulos.
Num
registo claro e informado, “O 25 de Novembro a Norte” (re)conduz-nos ao
entusiasmo transformador do processo revolucionário entre as camadas populares,
nas comissões de moradores, nas fábricas, nos campos, das lutas operárias, e da
experiência democrática nas câmaras, sendo de destacar, no Porto, a criação do
Conselho Municipal, que viria a ser, aliás, um alvo predilecto da
contra-revolução.
Ao
mesmo tempo, enquadra e esclarece a evolução dos ataques, por vezes violentos, às
comissões administrativas da câmaras, dos entraves aos avanços políticos, os prenúncios
e a consumação de retrocessos, das violências, ao mesmo tempo que vai
dilucidando sobre os protagonistas e organizações, situando-os nos seus papéis,
missões, propósitos, actos e omissões.
Com
“O 25 de Novembro a Norte”, clarifica-se muito da trama complexa que foi
criando dificuldades ao processo revolucionário; que peças se movimentaram e
que responsabilidades históricas lhes cabem: de Spínola e Alpoim Calvão; de
Mário Soares e Sá Carneiro e Freitas do Amaral; de Otelo, Vasco Lourenço e
outros oficiais do 25 de Abril – e também dos que foram oficiais do 25 de
Novembro – de Eurico Corvacho e Vasco Gonçalves e Costa Gomes; do PS e do então
PPD e do CDS; do PCP e de vários outros partidos e formações
Mas
Sarabando recorda como foram possíveis conquistas importantes, desde logo a
Constituição da República, apesar do quadro extraordinariamente adverso e
violento, e não obstante a “maioria democrática” proclamada pelo então
presidente do CDS, Freitas do Amaral, já que o PS, o PPD e o CDS ocupavam, ao
todo e por junto, 213 dos 250 lugares na Assembleia Constituinte. Cito, da
página 76:
“E aqui encontramos uma das mais
prodigiosas singularidades do Processos Revolucionário português, pouco
abordada nas centenas de trabalhos académicos, jornalísticos, depoimentos,
relatos biográficos que pudemos consultar. Enquanto nas ruas se desenrolava uma
cruzada anticomunista, com o PS à frente, a acobertar toda a direita, enquanto
se revelava a violência organizada dos saudosos do Império e da velha ordem,
dispostos a tudo, enquanto os Países aliados da NATO exerciam as suas pressões
económicas e militares, que Vasco Gonçalves e Costa Gomes se esforçavam por
contrariar, a Constituição foi sendo escrita, e a Lei finalmente aprovada
tornou-se a mais avançada da Europa”.
Dirigindo-se
aos deputados constituintes no primeiro dia dos trabalhos[2], o Presidente da
República, general Costa Gomes, avisou-os:
“É tarefa para génios gizar uma
Constituição revolucionária, tão avançada que não seja ultrapassada, tão
adequada que não seja flanqueada, tão inspirada que seja redentora, tão justa
que seja digna dos trabalhadores de Portugal”.
Senhores deputados: em nome dos mais
humildes, das classes mais desfavorecidas, que desejam, na luta do trabalho
diário, o avanço da nossa revolução, vos peço que minimizeis os vossos
interesses partidários, subordinando-os à consciência afinada pelos interesses
maiores da Pátria e do povo de Portugal”.
É
importante sublinhar que os trabalhos da Assembleia Constituinte, que
culminaram em 2 de Abril de 1976 com a votação global do articulado da
Constituição, a leitura das declarações de voto dos partidos e a imediata
promulgação pelo Presidente da República, se iniciaram a 2 de Junho de 1975, exactamente
no mês que Sarabando fixa como aquele em que iniciou o “Verão Quente”.
Cumpriram-se,
no passado Verão, exactamente 40 anos sobre esse período, efeméride redonda,
propícia a evocações, e todavia tão mal recordada e até praticamente silenciada,
a começar pelos meios de comunicação social – provavelmente por falta de
memória ou de cultura histórica, por desinteresse, por má consciência, por
falta de curiosidade e interesse por um período “mítico” tão frequente, mas tão
desinformadamente, mencionado.
Note-se,
seguindo Jorge Sarabando, que entre o primeiro acto terrorista da rede MDLP e
grupos associados, em Maio de 1975, e o último em Abril de 1977, foram
realizadas 566 acções violentas, destacando-se 310 atentados bombistas, 136
assaltos e 58 incêndios (pág. 74).
Só
entre Julho e Novembro de 1975, em 85 dias “úteis”, isto é, de actividade
terrorista no Norte e no Centro, registaram-se pelo menos 213 acções – se bem
as contei – uma média de 2,5 por cada dia de operações.
O
ponto máximo foi atingido no mês de Agosto, com 26 dias de actividade e mais de
83 acções – mais de três por dia – respondendo por pelo menos cinco mortos e
inúmeros feridos.
Os
alvos preferenciais eram as sedes e automóveis e residências de militantes de
partidos de esquerda e de organizações sindicais. Só o PCP foi alvo 84 vezes, e
nalguns casos repetidas, entre Junho e Dezembro de 1975.
E,
todavia, a Revolução movia-se. Nos campos, nas fábricas, nas associações de
moradores, nos sindicatos, nos serviços, fazendo avançar também a frente
legislativa, consolidando as conquistas populares, abrindo caminhos novos e
criando as condições legais e materiais para transformar a sociedade.
Seguindo
o enunciado de iniciativas legislativas ao longo deste livro e completando as
pequenas lacunas com recurso à magnífica iniciativa editorial “Conquistas da
Revolução”[3], encontramos pelo menos
menos 65 durante o ano de 1975.
Entre
muitas outras medidas, destacaria as destinadas a impedir a fuga de capitais e
de valores do país; a proibição do despedimento sem justa causa; a criação do
processo SAAL (de extraordinária importância para resolver os problemas da
habitação, mas que também acabou à bomba); a criação do subsídio de desemprego;
a Lei de Imprensa; a nacionalização da banca, dos seguros, dos transportes, da
electricidade, da petroquímica e da siderurgia, da radiodifusão e da televisão,
entre muitos sectores estratégicos para a economia; a criação do Provedor de
Justiça; a instituição do salário mínimo nacional; o apoio ao cooperativismo; o
direito ao divórcio nos casamentos católicos; o regime da Reforma Agrária e a legalização
da ocupação de terras na sua Zona de Intervenção; e o regime da expropriação de
prédios rústicos.
Ao
mesmo tempo, nas empresas e em muitos sectores de actividade, os trabalhadores
desenvolviam intensas lutas pela melhoria das suas condições, e em muitos casos
tomaram nas suas mãos a condução dos destinos das fábricas abandonadas pelos
patrões – um desafio extraordinário e complexo que veio a ser revertido, umas
vezes à força, outras com a divisão dos próprios trabalhadores.
E
mesmo assim, o país trabalhava e produzia. No final de Outubro, assinala
Sarabando (pág. 123), um relatório do Instituto Nacional de Estatística
publicado na imprensa é claro: há um “nítido aumento do nível de vida das
populações”.
“É
a luta de classes que nos ajuda a compreender a trama de um tempo tão
dilacerado em que, apesar das divisões, se alcançaram conquistas que ainda hoje
perduram”, reflecte o autor.
Ao
deixar-nos, nas “Palavras finais”, o enunciado amargo dos retrocessos desde
então – da reconstrução do grande capital, da perda da Reforma Agrária e do
controlo público de sectores estratégicos da economia, do recuo nas funções
sociais do Estado, das graves alterações às leis laborais, do regresso do medo
e da pobreza galopante – Jorge Sarabando não desiste, porém, de uma de uma
mensagem cheia de significado:
“Em tempo de aparente amorfismo e resignação nascem novos cantos”.
Saibamos,
pois, cantá-los.
(Texto da minha apresentação, ontem, na UNICEP, no Porto)