Os direitos dos jornalistas e a questão da propriedade dos meios de informação


1. Começo por saudar o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português por mais esta audição pública sobre a Comunicação Social, especialmente centrada nos direitos dos jornalistas e de outros trabalhadores e coerente com a linha de iniciativas diversas, de perguntas e interpelações e também de propostas legislativas que o PCP tem apresentado ao longo de sucessivas legislaturas.


Permito-me salientar o profundo conhecimento do sector e o interesse que o PCP tem dedicado concretamente às condições de produção dos media, e especialmente dos jornalistas, não porque constituam um grupo profissional cuja função justifique qualquer privilégio especial, mas porque é do seu labor e das condições em que exercem a sua profissão que depende decisivamente a qualidade da informação como bem público.

2. Por mais romântica, idealista, ou mesmo fantasiosa, que seja a representação social que se insista em projectar da profissão, muitas vezes como mecanismo subliminar de indução de auto-renúncia a direitos laborais e outras tantas como justificativo da exploração das expectativas de quem nela procura lugar, nenhum debate sério sobre o seu exercício enquadrado no sistema mediático capitalista pode deixar de ter em conta a sua condição de trabalhador por conta de outrem, nem de considerar a natureza da propriedade dos meios de informação.

Evidentemente que, ao menos no plano legal (e porventura teórico), estamos falando de uma profissão regulada e de profissionais investidos de deveres ético-legais e deontológicos, por conseguinte gozando de autonomia técnica insusceptível de quaisquer condicionamentos que façam perigar os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Mas, no terreno prático, a realidade é bem diferente – e não é nada indiferente para o que deve contar em termos de preocupação parlamentar.

3. Ao longo dos últimos anos, agravaram-se de forma acentuada as vicissitudes laborais, muitas delas comuns à generalidade dos trabalhadores, designadamente a sistemática violação de direitos; a perpetuação de um modelo assente na exploração de mão-de-obra qualificada e altamente qualificada (estamos a falar da geração de jornalistas mais escolarizada de sempre) remunerada com salários muito baixos; e a exposição a múltiplas formas de precariedade, seja em termos de vínculo laboral, seja quanto à composição dos salários, que frequentemente compreendem componentes dependentes do arbítrio e da “boa vontade” do empregador (isenção de horário de trabalho, subsídios de chefia…), seja ainda relativamente à percepção de segurança/insegurança no posto de trabalho – todas elas fortemente condicionadores da autonomia profissional, da consciência ética e da liberdade dos jornalistas.

Tal percepção é especialmente dramática num sector que nos é apresentado como cronicamente em crise, e no qual sucessivas “reestruturações” se traduzem em despedimentos, no abandono precoce da profissão, em rejuvenescimento forçado das redacções, na precarização das relações de trabalho, na erosão de memória, experiência, espírito crítico, organização e capacidade reivindicativa, em processos aos quais não é indiferente nem a natureza da propriedade, nem a concentração dos meios de informação.

4. Os grupos de media não concentram apenas – e já não é nada pouco! – uma enorme capacidade de recolher, tratar, orientar e difundir informação e de afirmar o seu poder no espaço público; concentram também o poder exclusivo de decidir quem entra, quem sai e quem permanece – e a que custo e com que cedências (por vezes mesmo éticas) – no jornalismo e na comunicação social. 

Ao contrário da ilusão, que frequentemente se alimenta, de plena autonomia e completa liberdade dos jornalistas, são também os patrões dos media quem (pelo menos indirectamente) determina e avaliza as orientações editoriais – escolhendo os directores, os quais, por sua vez, designam as hierarquias, que determinam a agenda, os temas, os ângulos de abordagem, as estratégias informativas, os projectos, as inovações e as aventuras e editoriais…  

É este quadro que devemos ter em conta quando falamos mais uma vez em crise no sector e quando ressurge a ameaça de novas reestruturações, que são um eufemismo cínico para designar despedimentos e oportunidades para higienizar redacções, justificar entorses de práticas profissionais e, paradoxalmente ou talvez não, enfraquecer projectos editoriais.

5. É também neste contexto que ressurge a ideia de financiamento público também dos meios de comunicação social privados.

O debate não é novo, mas, para além da discussão sobre modelos de alocação de fundos públicos, reclama em primeiro lugar do poder político o dever de assegurar previamente um conjunto de requisitos e garantias essenciais, sobretudo quando se invoca, como fez há poucos meses o Presidente da República , a necessidade de um “acordo de regime”, precisamente no Parlamento, num “período dramático da crise profunda da comunicação social” e, “portanto, da liberdade em Portugal, e, portanto, da democracia em Portugal”.

6. A questão é: financiar que meios,  com que objectivos, com que regras e garantias, na medida em que qualquer sistema de financiamento público corre o risco de traduzir-se em mero apoio à iniciativa  privada destituído de vantagens para  os cidadãos.

Gostaria de deixar algumas considerações e contribuições:

  • A livre expressão do pensamento e difusão de informação é o oxigénio da democracia, cabendo constitucionalmente ao Estado assegurar o pluralismo informativo e o livre confronto de ideias,  desígnio este que está longe de ser cumprido pelo sistema mediático.
  • O pluralismo informativo e de opinião é condição essencial para a subsistência de uma democracia saudável, mas nem as obrigações dos operadores são cumpridas, nem os próprios meios públicos o observam de forma satisfatória.
  • É visível que a generalidade dos media – públicos incluídos –, que partilha uma elite editorial, como mecanismo de formação de um consenso implícito sobre o valor notícia de acontecimentos, organizações, pessoas e ideias, possui uma agenda ideológica comum e afunilada, contrariando a legítima expectativa dos cidadãos de acesso a informação verdadeira, contrastada e plural. 
  • É evidente que as publicações periódicas detidas por entidades privadas (e só estas, porque a lei impõe aos operadores de serviços de rádio e de televisão especiais obrigações) gozam de liberdade para adoptar estatutos e práticas editoriais, mas é exigível que um eventual financiamento público da sua actividade implique um rigoroso conjunto de contra-obrigações, desde logo:

- Estritos deveres de pluralismo informativo e de opinião, isenção e rigor objecto de monitorização e de relatório do regulador do sector;
- Transparência nas regras de selecção e recrutamento de jornalistas, preferencialmente por concurso público, aliás obrigatório nos OCS de serviço público;
- Reforço das competências dos conselhos de redacção, designadamente atribuindo carácter vinculativo aos pareceres nobre nomeações de diretores e restante hierarquia;
- Absoluta ausência de quaisquer formas de precariedade;
- Respeito pela negociação colectiva.   
  • Face à natureza predominantemente privada das empresas de comunicação social e à concentração da propriedade de meios, d!eve o Estado criar um serviço público de imprensa – a par dos serviços públicos de notícias, rádio e televisão – , livre de constrangimentos comerciais e imune aos interesses ideológicos e financeiros dos accionistas.
  • O Estado deve assumir um verdadeiro sector público de comunicação social, assegurando o acesso dos cidadãos à informação pluralista ditada por critérios de interesse público e contribuindo para elevar os padrões de rigor e qualidade.
  • O Estado deve ainda promover e apoiar a criação e a manutenção de projectos editoriais independentes, designadamente sob a forma de cooperativas de jornalistas e outros trabalhadores da comunicação social.


(Intervenção na Audição Pública do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português na Assembleia da República sobre "Os problemas e direitos dos jornalistas e outros trabalhadores da Comunicação Social e as transformações do sistema mediático", realizada hoje")

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