As "fake news" já têm barbas...


Perante uma plateia ululante e freneticamente agarrada a centenas, talvez milhares, de telemóveis apontados ao palco do gigantesco salão da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, o pastor Silas Malafaia proferiu:

Cada celular é uma emissão de televisão e uma editoria de jornal. Acabou o monopólio da informação!




A reunião evangélica, realizada no Rio de Janeiro em 30 de Outubro de 2018[1], celebrava, precisamente, a primeira aparição pública do capitão na reserva Jair Messias Bolsonaro, acabado de eleger Presidente da República Federativa do Brasil.

Mais sentenciosas do que proféticas (na verdade, a eleição de Bolsonaro foi uma concretização dramaticamente enfática do novo paradigma de comunicação política), as palavras inspiradas de devoção tecnológica do pastor evangélico mais influente sobre este perigoso nostálgico da ditadura militar brasileira (1964-85) reflectem bem a ameaça à mediação profissional tradicionalmente realizada por jornalistas.

Embora a sua campanha se tenha baseado essencialmente num vasto dispositivo de redes sociais, foram os meios de comunicação social tradicionais – e especialmente os hegemónicos, detidos pelos importantes grupos de comunicação social e alinhados com os grandes interesses da direita incomodada com os governos progressistas – que criaram as condições para que essa figura emergisse e se impusesse.

Aberto o caminho, e procurando contornar os obstáculos apesar de tudo levantados pelos media à agenda reaccionária, ao discurso  truculento e boçal e a sucessivas tiradas e contradições polémicas do candidato, a sua equipa fez uma aposta num extenso e complexo aparato.

A aposta suportou-se ora na simplicidade indigente das mensagens, ora na enorme capacidade de difusão instantânea de textos e imagens de um Português abaixo do elementar mas de grande eficácia, redistribuídos a uma velocidade e a uma escala nunca vistos, multiplicando exponencialmente os destinatários, onde quer que estivessem, desde que estivessem ungidos dessa ilusão de democracia electrónica que é a miríade de computadores, tablets, telemóveis inteligentes…

Por muito que o opositor, Fernando Haddad, e os seus apoiantes lhes desmentissem as mentiras descaradas (de que o “kit gay”[2] é um gritante exemplo), por muito que os jornalistas tentassem escrutinar-lhes as afirmações e desmontar-lhes as mensagens, Bolsonaro – pai e filhos – e a sua trupe, generosamente financiados por grande empresários, manobraram com perícia a parafernália do Twitter, do Facebook e do WhastApp.

Ao mesmo tempo, milhares de apoiantes afadigaram-se a produzir os seus próprios rudimentos de mensagens, distribuindo-as e replicando-as por sua conta, risco e gosto e inspirando o pastor Malafaia: “cada celular é uma emissora de televisão e uma editoria de jornal… acabou o monopólio da informação!”

Definitivamente, a mediação jornalística foi arredada da campanha e da própria presidência: Bolsonaro reina com tanta eficácia encavalitada no passarinho azul que, da sua conta, compete matinalmente com Trump na torrente de tuítes que talvez não sejam tão inocentes como se pensa.

Escrutínio dos cidadãos

Nos últimos tempos, e com particular insistência nos últimos dias, ele tem sido um mote justificativo para várias iniciativas, inclusivamente parlamentares, em torno desse fenómeno que se quer dar como recente – que é a desinformação, as notícias falsas ou mentirosas, através das redes sociais, em relação ao qual é apresentado (enfim, a par de Trump) como exemplar digno de estudo – mas que em boa medida corresponde a uma prática com barbas…

O que há de provavelmente novo, em consequência do acesso generalizado (e democrático?...) a poderosos meios de intervenção no espaço público, com a possibilidade de criar, agregar e distribuir conteúdos, é uma efectiva perda do monopólio até agora detido pelos meios de comunicação social.

Assim como é um facto que está a desvanecer-se o poder (quase) ilimitado dos jornalistas e, sobretudo, o poder de última palavra sobre qualquer assunto ou pessoa.

Na verdade, nunca como hoje os jornalistas, o jornalismo e as empresas estiveram tão sujeitos a um intenso escrutínio da sociedade: inúmeros internautas dedicam, através de blogues e páginas nas redes sociais, preciosas horas a descobrir-lhes a careca da notícia mal fundamentada ou falsa, do facto inverídico ou não confirmado, das fotografias e dos vídeos de acontecimentos terceiros ilustrando, indevida e falsamente, acontecimentos de actualidade…

É um erro sustentar uma redutora tese conspirativa exclusivamente centrada “na luta contra as falsas notícias criadas em plataformas digitais para difundir maciçamente desinformação”, como propugna a proposta de resolução do PS aprovada anteontem no Parlamento[3], com um foco excessivo nas redes sociais como origem de todo o pecado e como frente de ataque à democracia municiado de “fake news”.

Render-nos-ia uma dúzia de extensos congressos a discussão da problemática da precedência no ciclo do ovo e da galinha, para averiguar onde nasceram as “fake news” – se nas redes sociais, se nos jornais, nas rádios e nas televisões, ou vice-versa.

Mas basta a suspeita, fundada em exemplos dignos de colecção, de escassez de verdade em tantas notícias, ou mesmo de manipulação, para que encararemos esse fenómeno, antes de mais, como um desafio para os próprios jornalistas.

Os cidadãos não podem deixar de ficar perplexos com tanta diabolização das redes sociais, quando um preocupante volume de notícias depende tanto delas e tem tantas vezes origem exclusivamente nelas, sem que sejam acompanhadas da necessária verificação, transformando os seus autores em fonte única – seja o senhor Trump para debitar os seus pitorescos e ameaçadores tuítes, seja o senhor Bolsonaro para os seus anúncios de péssima gramática, sejam certos protagonistas de circunstância, cujas contas no Twitter são religiosamente veladas por magotes de jornalistas, prontos a replicá-los, sem mais e acriticamente.

Veja-se o caso, apenas como exemplo, ainda há dias, de um telegrama da agência Lusa, datado de Caracas, noticiando que vários funcionários da Guarda Nacional Bolivariana “foram detidos por não terem executado a ordem de detenção do autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó”[4].

A notícia, repare-se, dá logo como assente que os guardas foram mesmo detidos e não mostra qualquer esforço de verificação junto de outras fontes, limitando-se a reproduzir uma mensagem de um deputado opositor publicada na respectiva conta no Twitter.

Não sabemos se é verdade, se é mentira. Mas, perante a evidente ausência de verificação e de contrastação da informação, é razoável duvidar da veracidade, e até suspeitar de que se trata de uma “fake news” que ganha foros de notícia legítima mediante a distribuição por uma agência noticiosa e a replicação na generalidade dos meios de informação[5].

Em recentes declarações ao jornal “Público”[6], o deputado José Magalhães (PS), o entusiasta da luta contra as “fake news”, dizia que o que falta é “apoio, informação e instrumentos” para que os cidadãos possam identificar as informações falsas e “alertar os cidadãos que há um conjunto de critérios de verificação que deve ser usado quando há uma informação veiculada numa rede”.

Por muito que se apregoe que, ao contrário “das redes”, a credibilidade e a legitimidade do jornalismo advêm do seu exercício regulado por um estatuto jurídico e por uma disciplina ético-deontológica próprios, que são os garantes da responsabilidade dos jornalistas e dos media perante os cidadãos, de pouco valem as normas e as declarações de intenção, quando a dúvida, senão a suspeita, contamina essa relação de confiança e põe em crise o pacto de lealdade com o público.

Bem sabemos que o sector da comunicação social sofre uma prolongada crise económica e que a profunda erosão de meios humanos, experiência e memória agrava as difíceis condições de produção dos meios de comunicação social, confrontados com a contínua perda de leitores e de audiência; assim como sabemos que a degradação das condições de trabalho dos jornalistas está também na origem de muitas debilidades.

Mas isso não explica tudo…


Balões-sonda

O que as campanhas de Trump, nos EUA, primeiro, de Bolsonaro, no Brasil, e do Vox, na Andaluzia, recentemente, assim como a campanha já em curso em Espanha, mostram é que a massa dos seus eleitores que os suporta nem frequenta, nem necessita sequer da informação dos media convencionais, aplicando com eficácia axioma do pastor  Malafaia – “todo o celular é uma emissora de televisão…”

Mas também é cada vez mais claro que o recurso às ferramentas de comunicação em rede produz efeitos muito perversos na relação dos protagonistas com os media, não só em termos da já instalada dependência “informativa” dos segundos em relação aos primeiros, mas também pelo condicionamento que impõem às funções de vigilância e escrutínio dos jornalistas, para não dizer do próprio debate nas instituições democráticas.

Talvez seja ledo engano crer acriticamente na origem ingénua e na inspiração tantas vezes boçal dos belicosos tuítes matinais do senhor Trump, essa espécie de espalha-brasas digital que gera sucessivas notícias, numa reacção em cadeia planetária que porventura serve mais uma estratégia de provocação preventiva do que um desígnio informativo, a testar reacções do mundo político e dos media, lançando “balões-sonda”, para usar a expressão do sociólogo espanhol Jorge Galindo[7].

Talvez seja perigoso acreditar que os tuítes escatológicos do senhor Bolsonaro – só para citar dois recentíssimos de pretensa crítica aos “desvios” do espírito carnavalesco – derivam mais da sua mentalidade medieval do que de um propósito calculado de desviar as atenções do povo e dos media da funesta (des)governação da nação brasileira e dos ataques meticulosos ao ensino e à cultura, à previdência pública, ao aparelho produtivo estatal, às conquistas dos governos progressistas, às comunidades de índios, trabalhadores rurais sem terra e quilombolas.

A eficácia do modelo de comunicação através de mensagens “balões-sonda”, bem como da difusão, no Twitter, mensagens polémicas como manobra de diversão tem sido testada com êxito bem ao nosso lado, pelo neofascista Vox, que se prepara para entrar de rompante no Congresso espanhol (e no Parlamento Europeu…).

Por ocasião das recentes negociações para a aliança de direita e extrema-direita que viabilizou o novo governo regional da Andaluzia, o Vox publicou uma mensagem sobre a queda de Granada (1492), o último bastião muçulmano na Península Ibérica.
Durante horas, as suas polémicas propostas e a sua agenda fascista saíram da agenda dos media em linha e do debate nas redes, que rapidamente se encaminhou para a discussão sobre se ainda faz sentido usar expressões como “Reconquista” ou “invasor muçulmano”[8].   


Financiamento público, agenda privada



Nos últimos tempos, ressurgiu a ideia do financiamento público também dos meios de comunicação social privados, como forma de garantir a sua sobrevivência, tendo sido sugeridas formas como a subsidiação à aquisição de publicações nomeadamente pelos estudantes, como forma de incentivo à leitura de jornais, bem como a taxação sobre os grandes grupos do digital revertendo parte dos seus lucros para os meios convencionais.

Sem duvidar da generosidade de propósitos dos autores destas propostas, gostaria de deixar algumas notas para reflexão, sugerindo um outro debate sobre o tema:

  • Ao Estado cabe assegurar o pluralismo informativo e o livre confronto de ideias, mas este desígnio está longe de ser cumprido pelo sistema mediático.
  • O pluralismo informativo e de opinião são condições essenciais para a subsistência de uma democracia saudável, mas nem as obrigações dos operadores são cumpridas, nem os próprios meios públicos o observam satisfatoriamente.
  • No entanto, é visível que a generalidade dos media – públicos incluídos –, que partilha e faz circular dentro do seu sistema uma elite editorial, possui uma agenda ideológica comum e afunilada, contrariando a legítima expectativa dos cidadãos de acesso a informação verdadeira, contrastada e plural.
  • É evidente que as publicações periódicas detidas por entidades privadas (e só estas…) gozam de certa liberdade para adoptar estatutos e práticas editoriais, mas é exigível que, como contra-obrigação por um eventual financiamento público da sua actividade, passem a ficar vinculados a estritos deveres de pluralismo, isenção e rigor.
  • Face à natureza predominantemente privada das empresas de comunicação social, e exclusivamente privada no segmento das publicações periódicas, deve o Estado criar um serviço público de imprensa – a par dos serviços públicos de notícias, rádio e televisão –, assim como deve promover e apoiar a criação e a manutenção de projectos editoriais independentes, designadamente sob a forma de cooperativas de jornalistas e outros trabalhadores da comunicação social.

(Texto da intervenção na sessão-debate "Comunicação Social e as fronteiras da democracia", organizado pela Associação Conquistas da Revolução - Núcleo do Porto)


[6] Edição de 03/03/2019, pág. 10, “PS chama partidos e Governo para combate às fake news
[7] “Marcar el debate aunque no lo gane: así fija la agenda Vox”, “El País”, 04/03/2019
[8] “El País”, artigo cit

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