Dia Internacional da Paz


A convite do Conselho Português para a Paz e a Cooperação, participei hoje num debate, no Clube Fenianos Portuenses, com Ilda Figueiredo e Henrique Borges. Nesta bela iniciativa, se sala cheia e interessada, disse o texto que se segue:


1. Saudação e agradecimento 

· Aos presentes, por dedicarem o serão a esta conversa, e porque está conversa faz parte do seu compromisso cívico.

Talvez não dêmos conta, mas a paz e a defesa da convivência entre os povos em igualdade de condições e no respeito mútuo precisa de todos nós. Por isso saúdo o lema do Encontro pela Paz em Loures, no dia 20 de Outubro – “Pela Paz todos não somos demais” 

A paz é um imperativo ético para os intelectuais, razão pela qual eles estão profundamente empenhados na sua defesa, de que são exemplos exaltantes os congressos dos intelectuais pela paz e o apelo de Estocolmo.

Peço desde já desculpa pela modéstia da minha contribuição para esta jornada, na qual gostaria de partilhar algumas inquietações e reflexões, através de três notas jornalísticas, uma nota pessoal e uma inquietação que gostaria fosse colectiva.



2. Três notas sobre a actualidade – desligadas, mas nem por isso…

2.1.A desnuclearização da Península da Coreia

A nova cimeira entre os líderes das duas Coreias terminou ontem com uma mensagem de alguma esperança numa efectiva desnuclearização da Península Coreana.

O entusiasmo recíproco que rodeou as conversações entre Kim Jong-un e Moon Jae-in e os momentos rituais em que ambos participaram são muito importantes do ponto de vista simbólico, no que sinalizam como possibilidades reais de progresso nas relações entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul.

Ambos pareceram sinceros e creio não haver dúvidas de que a mensagem de Ano Novo do líder norte-coreano, afirmando simultaneamente a capacidade militar de Pyongyang, pronta a defender a sua soberania, e a completa disponibilidade para um diálogo leal e entre iguais deu um impulso decisivo para o processo em curso.

Por outro lado, creio ser sincera a intenção do presidente sul-coreano de alcançar um genuíno processo de paz entre as Coreias, embora não possamos esquecer que a Coreia do Sul integra uma aliança militar com os Estados Unidos.

Num contexto mais largo do que a mera relação bilateral, não podemos ter ilusões acerca das questões de fundo que importa resolver com urgência, e que não estão apenas nas mãos dos dirigentes dos dois países, a saber:

  • A pressão e o verdadeiro cerco a uma Coreia do Norte internacionalmente sitiada e ideologicamente hostilizada, de que as sanções internacionais são um instrumento extraordinariamente poderoso – e os grandes meios de informação aliados decisivos.
  • O pretenso direito a que a chamada comunidade internacional – com os Estados Unidos à cabeça – se arroga de interferir na vida dos povos, de decidir sobre as suas escolhas e de condicionar ou revogar ilegitimamente a sua soberania.
(Trata-se de um problema que continua na ordem do dia relativamente a outros países em relação aos quais, nomeadamente os Estados Unidos e a União Europeia, com destaque para a França, o Reino Unido e Espanha, não desistem de tentar alcançar a destituição dos respectivos dirigentes, como são exemplo a Síria e a Venezuela, para dar dois exemplos de continentes distintos.)
  • A tenaz militar em torno da Coreia do Norte, em permanente ameaça à estabilidade e à paz na região, e mesmo numa escala internacional mais ampla, constituída pela presença na região de importantes meios bélicos dos Estados Unidos, incluindo em território sul-coreano e nas respectivas águas territoriais. 
Assim, deve ser lida com muita atenção a reiterada exigência das autoridades da Coreia do Norte, de uma efectiva reciprocidade de medidas, no que diz respeito à desnuclearização da Península.

De facto, um compromisso sério que conduza ao desmantelamento do dispositivo nuclear norte-coreano (já agora, tão ilegal, no plano do Direito Internacional, como o de Israel…) implica a retirada de meios da região, especialmente norte-americanos, que têm ou podem ter embarcadas a qualquer momento ogivas nucleares.

Ao mesmo tempo, há que exigir um efectivo compromisso dos dirigentes e das organizações internacionais, a fim de garantir essa reciprocidade, deixando de lado as sistemáticas desconfiança e reserva com que a chamada comunidade internacional encara as posições e os compromissos da Coreia do Norte.

A propósito, é importante assinalar a hipocrisia internacional: até este momento, apenas onze países ratificaram o Tratado de Proibição de Armas Nucleares.


2.2.As ambições militares de Trump na Europa – o exemplo polaco

Há dias, o presidente dos Estados Unidos manifestou o desejo de manter uma base militar permanente na Polónia, ampliando a capacidade estacionada no país, já hoje na ordem dos três mil soldados, apenas no âmbito das forças da NATO.

O presidente Andrzej Duda, de visita a Washington, respondeu logo com ampla solicitude, agradado e agradecendo o reforço da massa de botas cardadas norte-americanas em solo polaco, que evidentemente deve ir traduzir-se em mais unidades e mais equipamento bélico.  

De resto, em matéria de mimos, Duda não é de poupar em encómios nem dado a modéstias toponímicas – Trump, Fort Trump se chamará tal base norte-americana.

Para ela, o Governo polaco já disponibilizou a bonita soma de 1 700 milhões milhões de euros – a acrescer aos negócios chorudos em armamento que os Estados Unidos estão a fazer com Varsóvia. 

Um acordo recente aponta quase nove mil milhões de euros em mísseis Patriot, radares e outra parafernália que servirá para agravar a tensão com a Federação Russa.

Numa escalada de provocações, a NATO já tinha prenunciado o reforço de presença militar no chamado flanco Leste, com manobras na Polónia e nos países bálticos envolvendo mais de 18 mil militares.


2.3.Os negócios de guerra da monarquia democrática espanhola com a monarquia absoluta saudita

O negócio da guerra atinge níveis indecorosos de cinismo, quando uma ministra espanhola, para justificar a venda de bombas à monarquia absoluta saudita, se põe a dar garantias públicas de que os mísseis ar-terra, guiados por tecnologia laser, são de tal precisão que não haverá vítimas colaterais nos bombardeamentos com que a coligação internacional liderada pela Arábia Saudita (apoiada pelos EUA…) martiriza o Iémen.

Um recente relatório da ONU sobre a situação no Iémen não deixa dúvidas, nem mesmo aos mais ingénuos, acerca da noção de bombardeamento de precisão entendida e praticada pelas forças sauditas: alvos civis, escolas e hospitais incluídos, assim como autocarros que se sabe serem de civis, são sistematicamente atingidos.

Relatórios de organizações com a ONG Save the Children e do próprio Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) põem em evidência números angustiantes que mostraram ainda há dias os efeitos terríveis sobre a parte mais indefesa da população indefesa: 

  • Já morreram, vítimas de ataques, mais de 2200 crianças, ou seja, 22% (quase um quarto…) das dez mil pessoas que perderam a vida no “conflito”

  • Cinco milhões de crianças estão – neste momento exacto – ameaçadas pela fome.
Não sei como a ministra Margarita Robles dorme – se descansada se atormentada –, mas as boas relações comerciais e diplomáticas e outras obrigações entre as duas monarquias falam mais alto… 

Além das 400 bombas de precisão, urge honrar um acordo para a construção de cinco corvetas, destinadas também à Arábia Saudita, no valor de mais de 1 800 milhões de euros. É isto que se sabe… 

A coerência – e já agora a consciência - não quadram bem com o negócio de morte. 

Veja-se a Alemanha: apesar de a coligação governamental ter acordado, em março, a proibição de venda de armas aos países que participam na guerra no Iémen, Berlim aprovou, já depois disso, a venda de pelo menos quatro sistemas de posicionamento de artilharia… 


3. A pomba de Picasso em Sada

No topo de um monólito de granito no jardim de Sada voltado para a ria galega de Betanzos, no qual estão pregadas duas placas de homenagem aos perseguidos pelo franquismo em quatro décadas de ditadura, está gravada a pomba da paz, de Pablo Picasso.

Apesar da singeleza do monumento, a sua imagem acompanhou-me numa recente viagem em reportagem na Galiza sobre a memória negra de Francisco Franco e do golpe militar contra o governo republicano e progressista e legítimo que, em 1936, lançou Espanha numa guerra civil poderosamente apoiada pela Alemanha nazi e pela Itália fascista e instalou uma feroz ditadura de quatro décadas – aliás praticamente gémea da ditadura fascista portuguesa.

Não me saía da memória – e perdoem a insistência em memórias ou notas pessoais – sempre que recolhia elementos, designadamente ouvindo pessoas ou observando lugares tão distintos como: 

- o muro dos fuzilamentos em massa, em Ferrol, nos dias seguintes ao golpe;

- o cárcere fétido do Castelo de S. Filipe, em Ferrol, por onde passaram centenas de presos antes de serem postos diante da mira das espingardas falangistas; 

- as campas coletivas de combatentes e resistentes comunistas, socialistas, e anarquistas assassinados em fuzilamentos e “passeatas” traiçoeiras;

- vestígios de valas-comuns (ainda há milhares delas por toda a Espanha!) onde foram lançados;

- os memoriais erigidos pelas associações de recuperação da memória histórica e pelos municípios;

- ou o soberbo Paço de Meirás, monumento de exaltação quase sem limites a Franco e à obra militar assassina do generalíssimo de todos os exércitos e caudilho de Espanha.

Lembrei-me sempre dessa imagem – e de Guernika, claro – sempre que saudosistas mal disfarçados me dizem que “o que lá vai lá vai, é História, não vale a pena remexer no passado”, nem sequer retirar as ossadas do ditador da cripta da Basílica o Vale dos Caídos…

E lembro-me mais intensamente sempre que penso nos sinais de alerta para a reescrita e o branqueamento da História e para a ocultação da memória do terror, mesmo a coberto de discursos e narrativas apresentando-se como de “reconciliação” 


4. Eles andam aí! Como combatê-los? 

Lembro-me sobretudo quando penso na pesada tarefa que os intelectuais em geral e os jornalistas em particular têm para combater o avanço larvar, subterrâneo, ameaçador, dos fascismos e as expressões mais ou menos visíveis e os afloramentos mais ou menos significativos do seu ascenso.

A polémica, por exemplo, em torno da exumação de Franco do Vale dos Caídos, fortemente mediatizada em Espanha e de algum modo também em Portugal (eu pecador me confessarei?...)… 

Num mês, as visitas ao monumento mais infame que já vi – de glorificação dos vencedores da guerra civil, de exaltação da violência sobre a liberdade – aumentaram 76%.

Saudosistas, ou meros curiosos, simples interessados na História e na necessidade de tentar compreender o que aconteceu (eu próprio o visitei há anos com esse obetivo)…

Saudosistas serão muitos, certamente. Basta observar os gestos, furtivos ou ostensivos, a que não faltam os braços estendidos em saudação fascista, as máscaras de respeito e admiração.

Na verdade, eles andam por aí… 

Há quem defenda que a melhor maneira de combatê-los é trazê-los para o debate público, evitando que fiquem acantonados nos seus meios subterrâneos e, sobretudo, fazer com que exponham o vazio das suas ideias e a pobreza dos respetivos programas, centrados apenas em duas ou três ideias fortes, como o a rejeição da imigração.

Receio que esta proposta – que começa a fazer caminho em meios políticos “liberais” e nalguns sectores da comunicação social – de oferecer espaço, “tempo de antena”, para além daquele que os sistemas eleitorais democráticos proporcionam, radique nalguns equívocos.

O primeiro é que não é necessariamente verdade que tais forças sejam assim tão vazias de conteúdos e de ideias. A título de exemplo, podemos apontar o programa eleitoral da famigerada Liga, do neofascista Matteo Salvini, fartamente recheado de ideias e propostas.

O segundo tem a ver com a indiferença dos seus apoiantes por qualquer exposição de ideias de diferentes orientações e matizes e até a rejeição de qualquer debate sério e aprofundado.

Outro problema tem a ver com os efeitos induzidos pelas abordagens mediáticas precisamente ao conteúdo dos programas e às declarações dos seus dirigentes.

A verdade é que mesmo a imprensa mais “sóbria” e contida não tem hesitado muito na adjectivação, por vezes com tintas fortes, das forças ultradireitistas e neofascistas de Itália ou da Hungria, por exemplo, a par da exposição crítica das propostas mais brutais – por exemplo, em matéria de imigração e de defesa.

E, todavia, apesar da diabolização pelos media, essas forças não cessam de crescer em popularidade, em influência, em votos e em mandatos…

Como resolver?

Anteontem, o primeiro-ministro português defendeu, em Salzburgo, na Áustria, que a melhor maneira de os conter é não os promover na Comunicação Social.

A proposta suscita, naturalmente, inquietações de princípio, pois não se pode pôr em causa o pluralismo, embora seja certo que essa gente está-se nas tintas para o pluralismo e para os direitos, liberdades e garantias em geral.

Sucede que nós não somo como eles… 

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