Dos pormaiores omissos


Nos últimos dias, forças do Exército Árabe Sírio alcançaram significativos avanços em Ghouta Oriental, nos arreadores da capital, Damasco, reconquistando Doume e outras localidades importantes e dividindo o enclave, que estava controlado sobretudo por grupos terroristas, que muitos media e «especialistas» insistem em designar, de forma simplista, como «rebeldes» e «opositores» ao que sistematicamente classificam como «regime de Bashar al-Assad».
A utilização de conceitos genéricos e imprecisos – sistemática nalguns meios de informação estrangeiros e portugueses – para referir as forças «rebeldes» é um dos aspectos que mais contribui para confundir o público, redundando num ardil, como se fosse possível colocá-los todos no mesmo saco da «legitimidade» da oposição ao Governo da República Árabe da Síria.
Pode ser por desconhecimento; pode ser por falta de tempo para completar, de forma informada, despachos de agências noticiosas, tantas vezes redutores quanto à identificação das forças em presença; como pode tratar-se de falta de espaço.
Mas é necessário que os media, que servem aos leitores, aos ouvintes e aos espectadores o «produto final» da informação sobre os acontecimentos, não deixem de fornecer-lhes elementos essenciais que lhes permitam formular o seu próprio juízo sobre tais factos e o respectivo contexto. É para isso que serve o Jornalismo.
Pouco ajudam à formação de uma opinião pública realmente informada e apta alguns colunistas – frequentes ou ocasionais – que, acobertados sob as vestes de uma suposta independência científica, como «especialistas» ou «investigadores», se limitam a nutrir com preconceitos a recorrente narrativa da diabolização do Governo sírio, furtando-se ao especial rigor que lhes é exigível, por as intervenções no espaço público que lhes são concedidas levarem a chancela da credibilidade académica[1].   
Tão lestos a citar as cifras do chamado Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH), única e geralmente pouco ou nada contrastada fonte de informação dos media ocidentais quanto aos números de vítimas, muitos meios de informação omitem, com extrema frequência, as referências específicas aos concreto grupos alvejados pelas forças sírias feitas pelo próprio OSDH, sobejamente insuspeito de «ligações» ao «regime de Assad».
No meio de uma das suas mais recentes «notícias» sobre o desenrolar das operações militares em Ghouta Oriental, o OSDH precisa, com efeito, que os combates se travavam entre as forças sírias e os grupos terroristas Jaïch al-Islam[2] (o Exército do Islão, em árabe) e Faylaq al-Rahmane (ou Legião do Todo-Misericordioso).
Como as respectivas designações indiciam, trata-se de grupos de inspiração confessional, conforme se pode ler numa recente «descodificação» do jornal francês Le Figaro, mais que insuspeito de qualquer simpatia por Bashar al-Assad ou o pelo Governo sírio.
O primeiro é um grupo salafita, uma corrente «rigorosa» do islão sunita com uma interpretação estritamente literal do Corão com ligação à Frente al-Nusra, a filial síria da al-Qaeda, sendo apoiada pela Arábia Saudita. O segundo, apoiado pela Turquia e pelo Qatar, é outro grupo islamita salafita, próximo da Irmandade Muçulmana e com ligações à Frente al-Nusra, que o Centro Russo para a Reconciliação Síria exigiu, no domingo, sejam rompidas como condição para que possa partir da Ghouta.
Os seus propósitos estão muito longe de perseguir os simples objectivos «democráticos» de destituir o Governo da república laica que é a Síria, alvo de uma longa e tenaz ofensiva internacional por parte das potências imperialistas, que armaram, treinaram e financiaram uma complexa constelação de grupos armados, que se confundem – e por vezes digladiam – por interesses e objectivos diversos, mas que convergem num alvo comum a abater: Bashar al-Assad.
Outro elemento de primordial importância, mas omitido com frequência nas notícias sobre a situação em Ghouta Oriental, é o facto de este enclave, onde 400 mil habitantes servem de escudo humano aos terroristas, ser uma área de lançamento de constantes ataques «rebeldes» de contra zonas da capital da Síria, Damasco, designadamente com recurso a obuses, causando significativas baixas, mas que os media ocidentais pouco ou nada valorizam e tantas vezes omitem.
Na narrativa mediática dos acontecimentos na região, o que sobressai são «os ataques» do «regime sírio» sobre o enclave, um número elevado de vítimas civis (muito raramente há dados sobre baixas militares) expresso em cifras, extraordinária e surpreendentemente precisas, publicitadas dia-a-dia, quase hora-a-hora, pelo chamado OSDH, a fazer corar de inveja os serviços de comunicação de qualquer país ocidental, apesar do grau superlativo da devastação e da falta de recursos e meios básicos na região que as imagens mostram.
Em vésperas do sétimo aniversário do início da «guerra civil», que os media ocidentais estão a assinalar com estatísticas avassaladoras e adjectivos demolidores, valeria a pena olhar com olhos de reflectir para pormenores essenciais que tantas vezes e tão convenientemente omitem.
É bem provável que o balanço não seja favorável a quem omite pormaiores afinal tão decisivos para se compreender o que é realmente uma tragédia, mas que tem causas e explicações que importa ter presente. É que a simplificação é uma das mais perigosas armadilhas do Jornalismo e mina a credibilidade da informação.




[1] Por exemplo, num recente artigo no Publico (9 de Março), uma investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), da Universidade Nova de Lisboa, referiu-se sempre aos «múltiplos movimentos de oposição» e aos «movimentos de resistência», sem nunca os identificar ou caracterizar, ainda que sumariamente. A não ser para responsabilizar «os regimes sírio e russo» pela imputação do classificativo «terroristas» ao rótulo de «insurgentes» que a autora assume…  
[2] Neste caso e no seguinte, usa-se a grafia em francês.

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