Ambiguidade moral dos media

Nas últimas semanas, as denúncias públicas e o debate em todo do assédio e da violência sexual, designadamente nos mundos do espectáculo e do desporto, mas até contra pessoal ao serviço da Organização das Nações Unidas (ONU), ganharam uma projecção mediática nunca vista.

São cada vez mais frequentes e mais incisivas as notícias e as reportagens, e também mais presentes os artigos de fundo sobre o tema. Alguns autores, sobretudo entre especialistas e dirigentes de organizações de defesa e promoção dos direitos das mulheres e contra a violência de género, consideram que esta atenção há-de gerar uma dinâmica semelhante à observada em relação à violência de género e à pedofilia.
Não há dúvida de que os media, nem sempre lançando mão das melhores opções, especialmente no que toca à «ilustração» das peças, têm desempenhado um papel insubstituível na denúncia dessas práticas, na promoção do debate do assunto no espaço público e, especialmente, na contribuição para o aprofundamento da consciência dos direitos – como os da autodeterminação sexual e à integridade física e psicológica.
Trata-se de um problema demasiado grave para os media se limitarem a fazer eco dos acontecimentos, reduzindo-os à dimensão de simples faits divers; tema de topo de uma actualidade noticiosa destituída de raízes profundas; transitório, como se não mergulhasse nas causas de um caldo de cultura que permanece no nosso quotidiano; ou sem futuro, como se fosse possível lavá-lo da realidade com a esponja das notícias.
Trata-se também de um problema que tem nos media e no sistema mediático, senão parte das origens, pelo menos a cumplicidade rentável de uma espécie de ambiguidade moral que alimenta e perpetua paradigmas sexistas, nos quais a mulher, reduzida à condição de mero objecto sexual, desempenha um papel decorativo.
A leitura das secções de frivolidades de certos jornais e revistas, mas especialmente a visita às edições em linha, oferece, com abundância de corpos, escassez de roupa e exuberante adjectivação («fotos escaldantes», «explosão de sensualidade», «musa aquece as redes sociais»…), um corpus de análise suficientemente consistente para uma reflexão sobre a natureza das mensagens, a relevância das «notícias» e os papéis «reconhecidos» às mulheres.
No essencial, ressalta desses conteúdos o modelo de mulher-objecto, de mulher-adorno, de mulher-chamariz de capa, e pouco ou nada de mulher-sujeito, dotada de autonomia e autodeterminação, com direitos. O que nos remete necessariamente para uma discussão – urgente, s.f.f.! – sobre as representações da mulher que os media proporcionam ou alimentam.
Nos últimos dias, foi conhecida a decisão da organização das competições de Fórmula 1 de renunciar à utilização, já no Grande Prémio da Austrália, em Março, de gride girls, ou seja, «meninas da grelha», equivalentes às «meninas do pódio», ou «meninas da volta», em países de tradições velocipédicas como é o caso de Portugal.
Qual é o seu papel? «Embelezar» (de preferência com pouca roupa e/ou o mais justa possível) a zona de partida e de chegada dos pilotos, acompanhá-los no pódio, aplicar vistosos beijos de recompensa aos vencedores e deixarem-se regar pelas vigorosas aspersões de espumante, se apetecer aos galantes humilhá-las alegremente. Machismo e sexismo puro e duro, mas imagens espectaculares garantidas para televisões, jornais e revistas.
Funções das jovens hospedeiras (aliás geralmente bonitas, claro)? Adorno, objecto de diversão.     
Embora sejam uma «tradição» cujo fim revistas «femininas» noticiam de forma tão pouco crítica, a organização explica que «esse costume não reflete os valores» da sua marca «e está claramente em discordância com as normas da sociedade moderna», e por isso lhe põe justamente um fim.
A despeito da utilização sistemática e abundante, em Portugal, de hospedeiras, especialmente em competições de ciclismo, tanto como «meninas de pódio» como na promoção de marcas e produtos, o debate sobre o tema poderá permanecer arredado dos media do país, mesmo em órgãos de comunicação social de referência, onde a «tradição», por mais criticável que seja, parece ter acolhimento aceitável.
Talvez seja a altura azada para colocar na ordem do dia a discussão da cumplicidade dos media com a incompreensível contradição entre a função social de incentivo à prática desportiva e a sua transformação «em espaços absolutamente visuais para a discriminação das mulheres», como salienta a presidente da Fundação Mulheres, Marisa Soleto:
«É importante que quem promove os acontecimentos desportivos compreenda que (…) quando falamos de desigualdade ou de prevenção da violência de género, estamos a falar de um contexto cultural e de estereótipos partilhados que tornam muito difícil progredirmos na igualdade. O desporto é cultura, pelo que, se nestes espaços se coisifica a mulher e se a converte num adorno, contribui-se para uma pior imagem das mulheres.»

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