Os media e as armas nucleares
Por estes dias, o Conselho Português para a Paz e a Cooperação
(CPPC) está a dinamizar uma importante campanha de angariação de subscritores
de uma
petição com vista à assinatura (e ratificação), por Portugal, do Tratado
de Proibição das Armas Nucleares, adotado pela Organização das Nações
Unidas (ONU) em 7 de Julho passado.
A iniciativa não tem tido acolhimento nos media, seguramente muito ocupados com
outros temas e pouco inclinados a promover a discussão de assuntos de
importância vital para a comunidade, mas cuja utilidade imediata – e
imediatamente mensurável em audiência – não vislumbrarão.
Foi transitório o interesse mediático (aliás sem grande
entusiasmo) pelo tema quando, a 6 de Outubro, foi anunciada a atribuição do
Prémio Nobel da Paz à Campanha Internacional
pela Abolição das Armas Nucleares (ICANW, no acrónimo em Inglês), cujo
trabalho empenhado e decisivo deve ser justamente destacado.
Setenta e dois anos depois do lançamento das bombas nucleares
sobre Hiroshima (6 de Agosto de 1945) e Nagazaki (três dias depois), no Japão, com
a morte imediata, ou nos meses seguintes, de 215 mil pessoas, não obstante o
apelo à eliminação das armas nucleares aprovado pela então jovem ONU, em 24 de Janeiro
de 1946 (menos de seis meses após a tragédia) e apesar de o Tratado de Não
Proliferação de Armas Nucleares (1 de Julho de 1968) impor o desarmamento
geral e a eliminação total dos arsenais nucleares, o risco de uma catástrofe é
real e nenhum passo decisivo foi dado para cumprir aqueles objectivos.
Nove países (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido,
França, Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte) possuem um total de cerca
de 15 mil ogivas nucleares. Além daqueles, cinco outros (Bélgica, Alemanha,
Itália, Holanda e Turquia) têm estacionadas armas nucleares nos respectivos
territórios. E outros 23 – Portugal, Coreia do Sul e Japão incluídos – fazem
parte de “alianças nucleares”, com a NATO à cabeça, que os colocam nas rotas
destes dispositivos de morte cuja eficácia a imaginação do cidadão comum não
alcança.
Uns dois terços dos países do mundo – praticamente o hemisfério sul – estão
livres de armas nucleares, mas só por ingenuidade se pode crer que estarão ao
abrigo de uma conflagração nuclear, seja pela detonação deliberada de um
engenho, seja por erro ou por acidente.
Desde praticamente os alvores da era nuclear militar que os
movimentos de cientistas, com os físicos Frédéric Joliot-Curie, Albert Einstein
e Joseph Rotblat e o filósofo e matemático Bertrand Russel à cabeça, aos quais
se juntaram inúmeros outros intelectuais, alertaram para os elevados riscos que
impendem sobre a humanidade e se empenharam contra a bomba nuclear.
Dos artigos publicados imediatamente após o lançamento da
bomba de Hiroshima e dos programas de rádio, nomeadamente de Russel, ao Apelo
de Estocolmo (1950), passando por inúmeros artigos e entrevistas, debates e
manifestos, milhares de intelectuais não cessaram de avisar para a elevada
probabilidade de destruição maciça e em larguíssima escada – seja por impacto
direito da deflagração, seja pelo transporte de cinzas e poeiras radioactivas,
transportando radioisótopos que permanecerão activos por milhares e até dezenas
de milhares de anos.
Embora se registe uma (ainda muito incompleta) redução das
armas nucleares (eram mais de 20 mil em 2010 e mais de 70 mil nos anos 1980), a
crescente sofisticação dos arsenais, à força de vultuosos investimentos, a
mobilidade e a capacidade de propulsão são surpreendentes e muito perigosas.
Estima-se, por exemplo, que dois terços das 300 ogivas francesas estejam
embarcadas em mísseis balísticos em submarinos e podem alcançar dez mil
quilómetros de distância.
Independentemente de quem possui as armas nucleares, não há
a menor dúvida de que constituem uma ameaça real à segurança e ao futuro da
humanidade e de que, apesar da retórica desculpabilizadora baseada na invocada
necessidade de dissuasão tão frequente e hipocritamente usada no discurso
“diplomático” dos detentores de armas e dos seus seguidores, estamos perante
uma séria questão de ética da legitimidade.
Não são apenas as convenções de direito internacional
humanitário que proíbem os ataques indiscriminados, ou as armas que, pela sua
natureza, possam causar danos supérfluos ou ferimentos desnecessários e que
impõem o princípio de que o direito dos países em conflito a escolher os
métodos e meios de combate não é ilimitado.
É sobretudo a exigível sã consciência de que qualquer ser
humano deve possuir acerca dos limites ao seu poder, de que a ninguém é lícito
decidir sobre a vida ou a morte dos povos e o destino da própria humanidade,
assim como, por maiores que sejam as divergências, não há uso benigno possível
para o poder de destruição tão letal e tão extenso hoje ao alcance do homem.
Porém, os media não
proporcionam o mínimo debate sobre um tema tão decisivo na vida dos povos. Pode
ser por indiferença – o que é deplorável –, ou até pode ser por um critério de
prioridades na agenda – o que é preocupante –, mas a escassez ou mesmo ausência
de discussão e reflexão no espaço público deixam os cidadãos e os próprios
jornalistas desarmados perante o arsenal argumentativo dos detentores de armas
nucleares e seus vassalos e seguidores.
É assim que pouco ou nada se questiona a posição seguidista
do Governo português, que esteve fora das
negociações do novo Tratado e evidentemente não quer assinar (e muito menos
fazer ratificar) o Tratado de Proibição de Armas Nucleares, com o singelo
argumento segundo o qual esse
acto, «que declara ilegais as armas nucleares» não seria compaginável com a
circunstância de ser membro da NATO, que «é uma aliança nuclear». Esta é aliás
o maior detentor de ogivas do mundo: além das 6800 dos Estados Unidos, 300 da
França e 215 do Reino Unido, sem contar com as 80 do amigo Israel[1].
Ou que se come e cala, numa obediente «independência»
jornalística, incensando acriticamente a doutrina da NATO (herdeira ideológica
da doutrina de hegemonia planetária que os Estados Unidos deixaram tragicamente
plasmada nos ataques a Hiroshima e Nagazaki, quando já era mais do que
evidente, desde 1944, que a Alemanha nazi não possuía a bomba atómica), ou se
questiona o poder ilegítimo que a Aliança Atlântica outorga a si própria de
impor a sua paz ao mundo, aliás bem
patente no seu comunicado
de 20 de Setembro, a propósito da abertura às assinaturas do Tratado de
Proibição das Armas Nucleares.
Continuaremos a calar?
[1] Usa-se
aqui, tal como em relação aos restantes detentores de arsenais nucleares, a
informação regular do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo
(SIPRI, no acrónimo em Inglês), que não consta como insuspeita quanto ao
independência, pelo menos nos media mainstream…,
mas é mencionada, por vezes, a hipótese de Israel
possuir realmente umas 200 ogivas.