Por um serviço noticioso público



A convite da Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto da Assembleia da República, participei hoje numa conferência parlamentar sobre o modelo de agência noticiosa e informativa de interesse público, com referência ao caso e à situação da Agência Lusa.
Na minha intervenção, defendi, em síntese, que a Lusa deve ser uma empresa de capitais exclusivamente públicos; que o papel do Conselho de Redacção é fundamental e deve ser reforçado e protegido; que é necessário criar um Conselho de Opinião; e que é essencial submeter a agência às efectivas supervisão e regulação.

A comunicação integral é a que se segue:


Conferência Parlamentar

MODELO DE AGÊNCIA NOTICIOSA E INFORMATIVA DE INTERESSE PÚBLICO – O CASO DA AGÊNCIA LUSA

Assembleia da República | 28 de Março de 2017


Por um serviço noticioso público


Alfredo Maia


1. Introdução

Qualquer discussão, que se pretenda proveitosa, sobre o modelo de agência noticiosa nacional de serviço público estará condenada se nos deixarmos enredar no debate, geralmente predominante, sobre a premissa – necessária mas não necessariamente determinante – dos encargos que representa para o erário público.
O Serviço Público de Informação é tão vital como a Escola e a Saúde públicas, e o Estado deve assumir os seus custos.
É necessário discutir, prévia e conscientemente, os objectivos, os requisitos, as condições e os obstáculos razoavelmente previsíveis do empreendimento a que se pretende lançar ombros e sustentar.
Sabemos, da história das agências noticiosas – incluindo as portuguesas – e da própria experiência contemporânea, como são frequentes as dúvidas sobre os papéis desempenhados por alguma delas, designadamente na fixação e disseminação de conceitos e na fabricação de consensos convenientes, que podem redundar em manipulações e até em propaganda.
Na realidade, uma agência noticiosa possui um enorme poder de influência no espaço público, precisamente porque constitui o manancial de informação essencial da generalidade dos órgãos de comunicação social, especialmente nas edições em linha.
São as agências que respondem pelo essencial de muito do que publicam e difundem os jornais, as rádios e as televisões, determinando muito das respectivas agendas e das concepções que informam e enformam os seus noticiários e a visão da vida e do mundo que os inspira.
São elas que, de forma remota, definem muito do que pensamos e decidimos nas nossas vidas como cidadãos.
Na actualidade, como nos primórdios da indústria da informação de que as primeiras agências foram um poderoso impulso, inúmeras notícias só chegam ao grande público, aos leitores dos jornais (electrónicos agora incluídos), aos ouvintes das rádios e aos telespectadores, graças aos despachos das agências nacionais e internacionais, que têm repórteres onde aqueles não chegam.
Assim como o tratamento de muitos acontecimentos igualmente cobertos por repórteres próprios dos órgãos de informação clientes das agências não dispensa o suplemento dos serviços desta – seja para completar elementos, seja para verificar factos.    
Parece consensual que as notícias de agência devem ser de tal modo rigorosas, objectivas e imparciais que sirvam sem reservas de “matéria-prima” de pureza indiscutível para rigorosamente todos os seus clientes – independentemente das respectivas orientações editoriais.
Por isso as notícias de agência devem ser despojadas de toda a djectivação, imunes aos preconceitos e avisadas contra as armadilhas da semântica e aos alçapões da ambiguidade, a fim de prevenirem a contaminação pelos germes da manipulação ou pelo menos do erro.
Trata-se, como bem se comprometia, nos seus Estatutos, a velha ANOP – Agência Noticiosa Portuguesa –, de exercer a actividade “com rigor e objectividade, por forma a garantir uma informação digna de confiança à escala nacional e internacional”, “actuando como instrumento ao serviço do interesse colectivo e da democracia”.

2. Serviço Público
É neste quadro que deve discutir-se a importância e a necessidade imperiosa de um modelo de serviço noticioso público – que pode e deve ser assegurado pela Agência Lusa, ainda que a evoluir institucionalmente – que concretize a incumbência do Estado de garantir o direito à informação.
Por outras palavras, que a realidade social, económica, cultural, científica e política, as necessidades, anseios e realizações das populações sejam conhecidas e dadas a conhecer, onde quer que aconteçam no espaço territorial português, na diáspora portuguesa e em qualquer local do mundo onde os acontecimentos nos ajudem a compreendê-lo.
Na Resolução do Conselho de Ministros n.º 84-L/2016, de 30 de Dezembro, que aprova a minuta do novo contrato de prestação de serviço de interesse público (mas que ainda não conhecemos), o Governo assume que “ao Estado incumbe assegurar a prestação de um serviço público de informação, nomeadamente através da disponibilização de um serviço noticioso informativo e permanente”.
Trata-se do reconhecimento de uma missão do Estado – de serviço público e não mera “prestação de serviço de interesse público”, como vem sendo designado desde os primeiros passos para a criação do que veio a ser a ser a Lusa – ainda que o contrato para a prestação de tal serviço contenha elementos fundamentais para a sua caracterização, a saber:
  • A obrigação de assegurar uma informação factual, isenta, rigorosa e digna de confiança e seguindo critérios de independência e de respeito pelo pluralismo, correspondendo aliás aos pressupostos do serviço noticioso e informativo de interesse público;
  • A prestação dos serviços – que o contrato quantifica – que assegurem o cumprimento das obrigações do Estado no âmbito do serviço de interesse público relativo à informação dos cidadãos;
  • A produção de um serviço de notícias sobre os mais portantes factos da actualidade nacional e internacional, designadamente nas áreas política, diplomática, social, económica, de desenvolvimento local e regional, cultural e desportivo que contribua para a informação dos cidadãos e o exercício da cidadania, a promoção da coesão nacional e a projecção dos interesses nacionais no exterior; 
  • A efectiva cobertura informativa nacional e regional do País, além dos acontecimentos relacionados com a União Europeia, os PALOP, as comunidades de cidadãos portugueses e outros espaços com interesse para Portugal;
  • Uma política tarifária de serviços adequada à realidade dos órgãos de expansão local e regional;
  • A distribuição de serviços noticiosos aos órgãos de comunicação social portugueses – nacionais, regionais e locais – das comunidades residentes fora do país, dos países e comunidades de expressão portuguesa, às missões diplomáticas e consulares, entre outros clientes e, ainda, aos órgãos de informação estrangeiros, nomeadamente as agências de notícias internacionais;
  • A manutenção de uma rede de correspondentes – que na verdade deveriam ser de delegações nas principais capitais de distrito, no caso do país, e das principais cidades do mundo e dos países lusófonos – em todas as capitais de distrito, nas regiões autónomas e em todas as capitais de países da lusofonia, bem como dos países com comunidades portuguesas expressivas.   
Para preencher os requisitos fundamentais de um serviço público – e até por analogia com os serviços públicos de rádio e de televisão, mas considerando as limitações próprias da agência – seria importante adicionar obrigações como:
  • A promoção e a valorização da Língua Portuguesa, adoptando como doutrina e como prática o tratamento irrepreensível da língua nas suas expressões escrita e oral (recordemos que a Lusa distribui serviços de texto, áudio e vídeo), tanto nos serviços distribuídos em Portugal como noutros países de língua portuguesa;
  • A valorização, promoção e divulgação do acervo documental da agência, sem prejuízo do respeito pelos direitos de autor e da valorização económica desses recursos;    
  • A garantia do exercício de réplica política dos partidos representados na oposição;
  • A efectiva garantia do exercício dos direitos de resposta e de rectificação, designadamente através da adequada publicitação dos termos e condições, eventualmente nos novos Estatutos, embora seja consensual o entendimento de que é aplicável o disposto sobre esta matéria na Lei de Imprensa.           

A satisfação destas obrigações mínimas, que aliás o contrato de prestação de serviços de interesse quantifica e orçamenta, exige no entanto uma estrutura altamente profissional e qualificada – do topo da pirâmide ao extremo capilar da rede de correspondentes, infelizmente atingida pelos cortes nas indemnizações compensatórias, embora o super-esforço e a competência dos profissionais ao serviço da agência tenham ajudado a colmatar insuficiências.
Por muito que os relatórios do cumprimento do serviço público se ufanem com os resultados anuais que excedem os valores fixados, são evidentes os sinais de uma rede precarizada e de uma Redacção enfraquecida.
O poder político deve assumir como custo da cidadania e da democracia a manutenção e uma agência robusta, independente e com plenas condições de funcionamento.

3. Regulação
A prestação de informação e acompanhamento do contrato de prestação do serviço de interesse público pela Lusa é feita apenas perante os ministros das finanças e da tutela da comunicação social, inexistindo qualquer órgão independente que escrutine, fiscalize ou se pronuncie sobre o desempenho da agência.
No plano interno, digamos assim, funciona, estranhamente na dependência do conselho de administração, uma comissão consultiva composta pelos directores de informação dos órgãos de comunicação social subscritores da totalidade da agência, com o fim, segundo dispõem os respectivos Estatutos (Cfr. Art.º 16.º), de "analisarem a qualidade e a competitividade da produção noticiosa e aconselharem a administração na orientação da actividade da sociedade".
Além de colocar a administração a tratar com directores de órgãos de informação matérias de natureza essencialmente editorial da competência do director da própria Lusa, o que é no mínimo discutível, representa uma sobreposição às atribuições e competências do Conselho de Redacção, órgão que legalmente coadjuva o director e através do qual os jornalistas exercem o direito constitucional de participar na orientação editorial da agência.
O próprio relatório anual relativo às actividades realizadas pela agência no âmbito do serviço público é elaborado pelo conselho de administração, sem que algum órgão – nem mesmo o Conselho de Redacção, quanto mais um conselho de opinião, que não existe, se pronuncie sobre tal documento.
Sendo, de facto, necessário avaliar o desempenho da agência quanto ao cumprimento das suas obrigações, e designadamente quanto ao pluralismo informativo, deveria ser criado um órgão independente de acompanhamento, à semelhança do Conselho de Opinião da RTP, sem prejuízo das atribuições e competências da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
É importante convocar a este debate a ERC, precisamente pelas preocupantes omissões do regulador no que tange à actividade da agência Lusa.
Em parte, talvez possa explicar-se, salvo melhor opinião, pela própria natureza da regulação estabelecida pelo legislador constituinte, que é de "jurisdição" genérica desde a revisão constitucional de 1989, com a criação da Alta Autoridade para a Comunicação Social e a extinção dos reguladores especializados – o Conselho de Comunicação Social, para os órgãos de informação do sector estatal, depois da existência de conselhos de informação para a RTP, a RDP e a ANOP; e o Conselho de Imprensa.
Ora, a ERC, prevista na CRP desde a revisão de 2004, extinguindo a AACS, não só abrange as agências noticiosas no seu âmbito de supervisão e intervenção (Cfr. Art.º 6.º dos seus Estatutos), mas também tem a incumbência de elaborar anualmente um relatório das actividades de comunicação social e sobre as suas próprias actividades de regulação e supervisão (Cfr. Art.º 24.º,).
Até ao presente, a ERC publicou dez relatórios da Regulação, relativos aos exercícios de 2006 a 2015, e oito sobre o pluralismo informativo cobrindo o mesmo período, tratando, estes, concretamente do pluralismo político-partidário nos diversos serviços de programas dos vários operadores de televisão.
Salvo erro ou desatenção, nenhum relatório aborda o desempenho da Agência Lusa, nem mesmo no que respeita à observância do pluralismo, princípio que, numa agência de serviço, público deve ser exemplarmente escrupuloso.
Trata-se certamente de uma omissão – apesar de tudo negligente – à qual o regulador não terá prestado atenção e que tampouco tem merecido reparos, até dos mais atentos, talvez mais centrados nas evidências a superfície do que nos mostram as rádios, as televisões, os jornais e os meios em linha, do que na origem de muitas das informações que estes veiculam, com frequência transcritas na íntegra.
Não quer isto dizer que a agência esteja subtraída à regulação: em 75 deliberações, se não erro, da Alta Autoridade para a Comunicação Social e da ERC, entre 1991 e 2016, 22 referem-se a queixas que têm a Lusa como objecto.

Ao discutirmos um modelo de agência de serviço público, que há-de necessariamente ser pública e de capitais exclusivamente públicos, não poderemos deixar de prevenir que não se furte, por acção ou omissão, à regulação – interna e externa – mais completa e sistemática, que não poderá deixar de estar prevista nos respectivos Estatutos.
Na verdade, as agências possuem um poder de influência no espaço público tão poderoso que os cidadãos não podem ficar sem saber à margem do escrutínio sobre a sua actividade.

Disse.
.

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