Títulos de risco
Por estes dias, os meios de
informação afadigam-se com o justo debate sobre a inaceitável descida da Taxa
Social Única (TSU) a cargo dos empregadores, oferecida pelo Governo aos patrões
como contrapartida pela aceitação de um escandalosamente parco aumento do
Salário Mínimo Nacional, e que deverá ser revertida amanhã na Assembleia da
República.
O tom dos media sobre o assunto cavalga a onda da dramatização – se o Governo
tem ou não “plano B” para o chumbo parlamentar, que o primeiro-ministro garante
aos patrões que honrará o compromisso, que os patrões pressionam António Costa,
que o Governo e os patrões estão «reféns dos partidos», que o PS acusa o PSD de
chantagem – à qual não falta a linguagem bélica: «Esquerda abre fogo da TSU
sobre Costa e este dispara contra Passos»[1]…
Basta ler os títulos dos jornais
ou das televisões, por vezes ideologicamente armadilhados. Um deles – “Descida
da TSU em risco» –, repetido dias a fio pela SIC
Notícias e pela SIC generalista, e também usado nomeadamente pelo Jornal
de Negócios, justifica alguma discussão, quer pelo que possa ter de pouco
inocente, quer porque simplesmente ceda ao facilitismo, quer porque se socorra
de artifícios da ambiguidade para atrair público.
As palavras possuem significados
e pesos próprios e não é por acaso que escolhemos umas e não outras quando
comunicamos. Como ensinavam já os velhos manuais, a preparação da mensagem
jornalística «faz-se com a dupla preocupação de assegurar uma boa comunicação,
isto é, de tornar a mensagem inteligível ao maior número de pessoas e de
utilizar o melhor possível os meios técnicos de que se dispõe»[2].
Além de um potencial de alarme
inútil, a simples utilização da palavra «risco» comporta o… risco de colocar
o(s) autor(es) das notícias na incómoda suspeita de adesão a uma das posições
em confronto – no caso, a defendida pelas confederações patronais e a UGT, sua
aliada histórica.
Em que consiste «risco» da
descida da TSU? E para quem? Para os patrões… E por que razões é um «risco» e
não uma vitória, desde logo para os trabalhadores, para a CGTP e para outras
forças que consideram que a descida da TSU representa uma subtração ilegítima ao
financiamento devido à Segurança Social?
Talvez se argumente que se tratou
de uma tentativa, mais ou menos infeliz, de simplificação da mensagem, de um deslize
estilístico e não de uma subordinação das redacções à agenda dos patrões. Mas
não há como reflectir sobre os perigos das «palavras armadilhadas», com Andreas
Freund[3]:
«As palavras
armadilhadas são, nada mais nada menos, desinformação veiculada por vocábulos
de conteúdo tendencioso. Uma vez transpostas, com a sua carga de sentido
demagógico, para a linguagem corrente, servem de munições de pequeno calibre na
permanente batalha pela conquista dos espíritos.»
Ora, esclarece Philippe Breton[4], «a desinformação é uma
acção que consiste em levar um receptor, que deliberadamente se pretende
enganar, a tomar por válida uma certa descrição da realidade, favorável ao
emissor, fazendo-a passar por informação segura e verificada».
É justamente para prevenir
armadilhas e suspeitas que a profissão de jornalista é especialmente exigente,
sendo avisado prevenirmo-nos até dos lugares comuns e dos bordões de linguagem
aparentemente inocentes e tantas vezes à mão para uso que supomos consensual,
mas que dissimulam realidades ideologicamente adversas.
Por exemplo, noticiamos que “Frio
mata sem-abrigo”, mas na realidade quem os mata “é a miséria”, como propôs o
jornalista Bertrand
Poirot-Delpech, ao estender, no diário francês Le Monde[5],
uma lista de rectificações de palavras e expressões armadilhadas.
Há muitos anos, ainda os
jornalistas estavam longe de adivinhar o turbilhão carregado de desafios e de
riscos em que estão absorvidos os seus camaradas de hoje, o primeiro director
do extinto Diário de Lisboa
(1921-1990), Joaquim Manso[6], postulou os princípios
fundamentais essenciais do exercício da profissão com uma síntese muito lúcida:
«O jornalismo
exige clareza mental, bom senso, visão rápida e segura, sentido moral agudo, a
fim de não misturar, na forja em que têm de trabalhar, o certo com o incerto, a
paixão cega com a intolerância amável, o episódio inventado com a realidade bem
observada»[7].
Um dos tópicos mais vivos e
dramáticos da forma como os media têm
tratado a contenda sobre a TSU é a especulada possibilidade de a apreciação
parlamentar vir a produzir uma crise política que ponha em risco – aqui sim, há
risco – o Governo, aliás do desejo confesso de muitos jornalistas e colunistas.
Da discussão do tema nos
editoriais e colunas de opinião, ressalta a ideia, muito perigosa, dada à
estampa nomeadamente pela directora do Dinheiro
Vivo, de que «pode abrir-se uma crise política por causa de um tema
económico»[8]. A simples tese da
estanquicidade entre «temas económicos» e política é, em si mesma, uma proposta
de abordagem estranha à democracia.
O problema é que talvez opiniões
como esta façam carreira, persuadindo os cidadãos de que matérias como o
financiamento das suas reformas ou dos serviços de saúde, da educação e da
cultura devem ser furtadas ao debate político e remetidas para espaços
reservados a tecnocratas e, já agora, à elite editorial que desenha e baliza o
consenso que rege o mundo.
Mantenhamo-nos de atalaia, com este
aviso Vicente Romano[9]:
«Sob a
cobertura de uma suposta liberdade de expressão, os poucos que realmente dela
dispõem, quer dizer, as minorias que detêm os meios para a expressar, tentam
moldar sistematicamente as consciências de milhões de pessoas, condenando-as à
menoridade intelectual, educando-as para a docilidade, para suportar, sem
críticas, o sistema de dominação e exploração vigente, e para considerar como
próprios os falsos ideais deste mesmo sistema».
No penúltimo fim-de-semana,
jornalistas portugueses reuniram-se no seu IV Congresso, apresentando
comunicações e intervindo nos debates com reflexões sérias, discutindo práticas
profissionais e tendências – umas impostas, outras para as quais resvalam – que
põem em causa precisamente o seu compromisso para com a verdade e com o
respeito pelos cidadãos.
Entre outros assuntos,
assinale-se a denúncia da perversidade da caça aos cliques e ao tráfego nas
edições electrónicas, da frivolidade dos temas, da ligeireza do tratamento de
temas importantes, dos títulos cheios de manha e das decisões que tantas vezes
fazem tábua rasa de princípios ético-deontológicos e dos deveres de rigor e de
ponderação.
Bem pregou Frei Tomás.
Ao final do primeiro dia de
trabalhos, o sítio oficial do Congresso publicava um vídeo com o seguinte
título: «Jornalista
do PCP defende registo de interesses». Tinha todos os ingredientes para
chamar a atenção.
Desconhece-se quantos cliques
garantiu, mas o efeito apelativo estava garantido, sem deixar de dar a ideia,
pouco edificante, de tal título não passar de uma graçola ou de uma picardia
infantil.
A peça, escorreita e honesta,
apresenta o autor da proposta como director da Global Imagens (está certo) e
sub-director do Diário de Notícias
(que já não é), sem nunca o identificar – e bem – pelo «atributo» forçadamente
chamado para título.
Pedro Tadeu é realmente militante
do Partido Comunista Português (PCP), ele próprio o assume em vários textos
publicados na sua coluna semanal no DN e repetiu nas declarações prestadas na
peça.
Mas as suas afirmações serviram
apenas para sustentar, a partir do seu exemplo e do seu ponto de vista,
estritamente pessoais, a autoridade da sua proposta. Era escusado rotular o
autor, sobretudo com o qualificativo possessivo “jornalista do PCP”, e
irrelevante e muito discutível o partido em que milita.
Aquele título poderia muito bem
ser «Director da Global Imagens…», ou simplesmente «Congressista defende
registo de interesses dos jornalistas”. Mas não seria a mesma coisa, pois não?
(Publicado em AbrilAbril)
[1]
Público, 18 de Janeiro de 2017
[2]
Philippe Gaillard, O jornalismo,
Europa América, Lisboa (1974)
[3]
Citado por Philippe Breton, A palavra
manipulada, Caminho, Lisboa (2001)
[4]
Philippe Breton, op. cit.
[5]
Edição de 22 de Janeiro de 1997, citado por Breton, op. cit.
[6]
Entre 7 de abril de 1921 e 11 de setembro de 1956, segundo Mário Matos e Lemos,
Jornais diários portugueses no século XX
– Um dicionário, Ariadne/CEIS20, Coimbra (2006)
[7]
Citado por Victor Silva Lopes, Iniciação
ao Jornalismo, Centro do Livro Brasileiro, Lisboa (1980)
[8]
Rosália Amorim, «TSU, o improvável do improvável», in Diário de Notícias, de 18 de janeiro de 2017