Em defesa do Conselho Deontológico


IV Congresso dos Jornalistas Portugueses
SESSÃO 3
REGULAÇÃO, ÉTICA E DEONTOLOGIA

Em defesa do Conselho Deontológico
(Subsídios para o esclarecimento de alguns equívocos)

Em memória de Oscar Mascarenhas

ALFREDO MAIA (CP N.º 684)

SÍNTESE

O Conselho Deontológico é o órgão da classe cuja experiência, prestígio e património de reflexão são reconhecidos dentro e fora da classe, designadamente para efeito de apreciação de queixas e pronunciar-se sobre a conduta do universo dos jornalistas, como os tribunais reconhecem. A criação de uma ordem hipotecaria a liberdade de associação e a independência dos jornalistas face ao poder político. Recomenda-se toda a prudência na eventual revisão do regime de incompatibilidades, sob pena de restringir direitos fundamentais.

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1. Chegados a este Congresso, é de toda a conveniência passar em revista alguns conceitos e realidades que, à custa de tanto treslidas e postergadas, podem parecer bizarros. É assim que se alimentam equívocos.
Por exemplo, em Portugal falta auto-regulação, ou é fraca, e faltam sanções, diz-se. Portugal é, pelo contrário, um país avançado neste domínio, no que tange ao ordenamento jurídico e quanto à organização dos jornalistas. E podemos compará-lo com a Europa civilizada.

2. A auto-regulação dos jornalistas assenta fundamentalmente no Código Deontológico, que deve ser observado por todos, desde logo por ter sido aprovado através de sufrágio pelo universo dos titulares de carteira profissional[1].
O Estatuto do Jornalista, que incorpora o essencial do Código, estabelece o dever fundamental dos jornalistas de exercer a sua actividade com respeito pela ética profissional[2]. E as leis de Imprensa, da Rádio e da Televisão impõem às empresas o compromisso, nos estatutos editoriais, de respeitar os princípios deontológicos e a ética profissional dos jornalistas[3].
O Código não resulta do impulso nem da iniciativa exclusiva dos jornalistas, admitindo-se que teve origem hetero-regulatória.
Mas não podemos esquecer que a Lei de Imprensa de 1975, cuja comissão de projecto o Sindicato integrou, ao estabelecer que a profissão seria regulada por um código deontológico, atribuiu à organização de classe a elaboração do Código[4], matizando com essa autonomia a referida origem.

3. É hoje pacífico que as instâncias essenciais da deontologia profissional  são os conselhos de redacção e o Conselho Deontológico.
Ao Conselho de Redacção compete “pronunciar-se sobre questões deontológicas”, dispõe o Estatuto do Jornalista[5]. É o órgão de auto-regulação de primeira linha.
É justa a crítica segundo a qual a maioria dos órgãos de informação não possui conselho de redacção e uma boa parte dos que existem tem actividade irregular e, com frequência, negligenciando as suas competências.
Tal realidade não exclui as virtualidades dos CR nem o facto de, mesmo assim, muitas práticas profissionais e desvios éticos terem sido prevenidos ou corrigidos. Há um potencial a recuperar e a valorizar.
Embora órgão estatutário do Sindicato dos Jornalistas, o Conselho Deontológico é, na realidade, sobejamente reconhecido pelo prestígio – dentro e fora da classe, na sociedade e até junto dos tribunais.
Mencione-se o exemplo do acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Abril de 2007, no qual é bem manifesta a importância, a qualidade e a extensão da acção e das orientações do CD, no caso, sobre uma das mais sensíveis situações éticas – a utilização de crianças em peças jornalísticas[6].      
Não obstante a atribuição de poderes disciplinares à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), mas cuja actividade não está publicitada[7], e apesar das eventuais críticas ao funcionamento do CD, este continua a ser o mais procurado. Em 2015, produziu 15 pronunciamentos; em 2016, publico nove[8].
Em terceira linha, poder-se-ia considerar a CCPJ dotada de poderes disciplinares para poder sancionar (com penas que podem ir à suspensão temporária até 12 meses[9]) as violações de deveres profissionais, correspondentes a parte dos consagrados no Código Deontológico.
Note-se, porém, que o artigo 14.º do Estatuto distingue claramente os deveres estritamente deontológicos (ínsitos no n.º 1), dos deveres correspondentes a violações disciplinares (n.º 2).
Essa distinção foi feita com clareza pelo Plenário da CCPJ, numa deliberação recente sobre o caso TVI/BANIF, concluindo que os factos apreciados poderiam “configurar a prática de graves infracções deontológicas” mas declarando-se incompetente para qualquer procedimento[10].     

4. Entre os equívocos sobre o Conselho Deontológico, alimentados inclusivamente em meios académicos, saliente-se aquele que pretende resumir o múnus deste órgão ao conjunto dos jornalistas sindicalizados, carecendo, alega, de legitimidade para exercer as suas competências sobre o universo profissional.
Tal equívoco é desmentido pela evidência das solicitações ao CD, disponíveis no sítio oficial do Sindicato. Analisando apenas os dois últimos exercícios, podemos concluir que mais de dezena e meia de jornalistas que supomos não sindicalizados foram objecto de queixas diversas pessoas individuais e colectivas.
A competência para pronunciar-se sobre as condutas dos jornalistas está reconhecida em pelo menos dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, um dos quais, proferido em 14 de Janeiro de 2003[11], conclui:
Compete ao Sindicato dos Jornalistas e ao seu Conselho Deontológico, no cumprimento dos seus deveres estatutários, pronunciar-se sobre a conduta de jornalistas relativamente a actos por estes praticados no exercício da sua profissão, (…) bem como pela falta de aconselhamento e apoio junto dos órgãos colectivos com competência na área da deontologia profissional”.
Um outro, de 15 de Janeiro de 2008[12], absolvendo os membros do Conselho levados a julgamento por um não associado, cuja conduta (de revelação de fonte de informação) condenara, declarando-o mesmo persona non grata, reconhece expressamente legitimidade para pronunciar-se sobre tal comportamento.
De um modo geral, o pronunciamento público do CD verberando as condutas reprováveis de jornalistas, que consubstancia a essência da “sanção moral” pelas quebras deontológicas, tem constituído a resposta adequada entre pares e com repercussão pública.
Aplicada na altura certa e com a publicidade adequada, é ainda a melhor e a mais eficaz sanção. Na verdade, o nome digno, limpo e credível é o mais precioso capital que um jornalista pode ostentar.    

5. O caminho consolidado pelo CD e as concepções de liberdade e responsabilidade que integram o nosso património justificam que aprofundemos a experiência e os valorizemos.
É provável a ideia de criação de uma ordem dos jornalistas seja colocada aqui. Representaria para os jornalistas a hipoteca da sua liberdade e o fim da sua independência face ao poder político.
Além de inscrição obrigatória, contrariando a liberdade de associação, uma ordem tem os estatutos aprovados pelo poder político e está obrigada a prestar contas da sua actividade ao Governo e ao Parlamento[13].
Não é por acaso que não existem ordens de jornalistas na Europa (excepto Itália) e as raras existentes na América Latina são resquícios de ditaduras. 

6. As diversas formas de precariedade, as condições de trabalho e sérias limitações de tempo e espaço aconselham mais camaradagem e mais coragem na defesa da liberdade de expressão e dos direitos dos jornalistas – também cívicos e políticos.
Uma eventual iniciativa com vista à revisão do regime de incompatibilidades que limite tais direitos, ou restrinja a liberdade de intervenção no espaço público, colocaria os jornalistas num gueto de exclusão cívica intolerável.
Cuidado com os voluntarismos e as derivas puristas. A liberdade perde sempre.

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[1] Consulta por voto secreto aos titulares de carteira profissional, em 4 de Maio de 1993
[2] Cfr. artigo 14.º, n.º 1, da Lei n.º 1/99, de 13 de Janeiro, alterada e republicada pela Lei n.º 64/2007, de 6 de Novembro)
[3] Cfr., respectivamente, Art.º 17.º, n.º2 da Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro; Art.º 34.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2010, de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 38/2014, de 9 de Julho
[4] Cfr. Artigos 10.º, n.º 3, e 61.º do Decreto-Lei n.º 85-C/75, de 26 de Fevereiro
[5] Cfr. Art.º 13.º, n.º 4 do EJ
[7] O sítio oficial da CCOJ não oferece qualquer informação sobre processos disciplinares desde 2013…
[8] Dados até 18 de Dezembro
[9] Cfr. Art.º 21.º do EJ
[10] Ver comunicado da CCPJ de 12 de Outubro de 2016
[12] http://www.jornalistas.eu/?n=6300 . Ligação electrónica para o Acórdão não localizada 
[13] Lei-quadro das Ordens Profissionais (Lei n.º 3/2013, de 10 de Janeiro)

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