Desafios sem manual de instruções
O dia 9 de Novembro de 2016 ficará na história da
comunicação social portuguesa como o dia em que um cidadão suspeito da prática
de crimes se entregou à Polícia perante equipas da RTP e do Diário de Coimbra, depois de ser entrevistado.
A RTP transmitiu mesmo em directo os agentes levando algemado «o homem mais
procurado do país».
Não há dúvidas de que foi «um momento único de televisão», prolongado
em sucessivos serviços com abundante difusão de extractos, com ponto alto nos
programas «Sexta às 9», com a transmissão da entrevista – supõe-se que na
íntegra – e «Sexta às 11», que a complementa com reportagens, depoimentos e convidados
em estúdio, nomeadamente os advogados de Pedro Dias.
Também não há dúvidas de que o programa da RTP registou
audiências retumbantes, aliás exuberantemente celebradas. Porém, permanecem
muitas interrogações sobre se terá sido um momento edificante para o
Jornalismo.
Segundo foi revelado, os jornalistas – da «inteira
confiança» da advogada, segundo a própria – foram chamados para testemunharem a
«entrega» de Pedro Dias à PJ, após quatro semanas de uma fuga que mobilizou
meios de polícia e da comunicação social sem precedentes e causou evidente
alarme social.
A tentação de aceitar o furo jornalístico era natural – não
acontece todos os dias e a concorrência é muito forte e muito intensa. Tão
intensa que deixa escassa margem de recuo para reflectir sobre as vantagens, os
riscos e os problemas que o caso levanta. Ainda por cima, o prazo para se porem
em campo seria reduzido.
Ficou claro perante o público que os jornalistas estiveram
presentes naquele momento, não em resultado de uma investigação própria e
independente, mas porque lhes foi proporcionado por dois advogados, que os escolheram
e os chamaram para o efeito. Em matéria de transparência, é um passo, embora
curto.
De facto, é legítimo questionar se, aceitando o convite, os
jornalistas correram o risco de serem instrumentalizados numa estratégia estranha
aos propósitos do Jornalismo – informar, explicar, e não limitar-se a
satisfazer a curiosidade do público; ajudar a compreender os factos no seu
contexto (complexo, por certo) mediante o exercício autónomo do juízo crítico,
e não tornar-se personagem em guião alheio.
Os advogados pretendiam que a «entrega» fosse testemunhada
por jornalistas. O objectivo consistia, segundo explicaram (e é lícito
perguntar se não haveria outros…), em garantir a integridade física e até a
vida do procurado (e das dos próprios advogados) se fosse feita perante
elementos da GNR e/ou da PJ.
Que mensagem pode ter passado? Que os profissionais de
polícia poderiam exorbitar das suas competências, violar gravemente a lei e as
garantias dos cidadãos – naquela circunstância como noutras? – se a «entrega» fosse
feita de outro modo.
Só o facto de ser colocar, mesmo como mera hipótese, a
possibilidade de isso acontecer, gera perplexidade tal que não deveria deixar
de ser questionada pelos jornalistas, sob pena, então sim, de inquietante alarme.
Estará o Estado de Direito Democrático assim tão em crise? Que se visse, que se
pressentisse sequer, nada buliu no sentido de vigilância cívica dos
jornalistas.
Outro problema é a possibilidade de ter sido postergado um
preceito deontológico muito importante: «O jornalista obriga-se, antes de
recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade
e responsabilidade das pessoas envolvidas» (Cfr. n.º 9, segunda parte, do
Código Deontológico dos Jornalistas).
Adoptado na revisão do Código Deontológico em 1993, na
sequência do vivo debate suscitado por uma entrevista, para a SIC e a TSF em
Dezembro de 1992, ao líder da resistência timorense, Xanana Gusmão, preso na
cadeia de Cipinang, tal preceito coloca num patamar eticamente muito exigente a
decisão de procurar ou aceitar entrevistar pessoas limitadas na autonomia e impossibilitadas
de responder de forma livre e conscientes das consequências das suas
declarações. Mal comparando, o caso merece reflexão também sob esse prisma.
É certo que os jornalistas envolvidos declararam ter encontrado
em Pedro Dias um homem sereno e tranquilo. Mas será menos verdade que, nalguns
momentos, o entrevistado mostrava certos sinais de ansiedade e de angústia,
indiciando que aquelas condições não estariam completamente reunidas? De resto,
segundo a advogada, ele não saberia que iria ser entrevistado…
Quanto ao conteúdo da entrevista, fica a impressão de que foram
mais as perguntas essenciais por formular do que aquelas que pouco mais fizeram
do que satisfazer a curiosidade óbvia (como sobreviveu, o que comeu, como
tomava banho…). É provável que não tenham sido autorizadas (ou teriam sido evitadas)
questões que poderiam pôr em causa a defesa, ou levar o entrevistado a auto-incriminar-se.
Mas o que será aceitável, do ponto de vista do mandato forense, pode ter posto em
risco a independência e a autonomia dos jornalistas.
Pode haver quem suponha que o episódio teria tido o mérito
de conceder ao procurado «a» oportunidade de «exercer o contraditório» em
relação a tudo quanto foi dito dele («perigoso», «psicopata»…). Mas talvez esse
desígnio tenha ficado bem longe, deixando-nos apenas um amargo sabor a «reality-show».
Perante uma oportunidade que a generalidade dos jornalistas
teria muitas dificuldade em recusar (na verdade, trata-se de um acidente
estatístico na rotina das redacções, mesmo naquelas que dedicam mais esforço à
cobertura criminal), mas que levanta cruciantes problemas ético-deontológicos,
é natural que se pergunte: «E tu, o que farias?».
No contexto de um «mercado» pouco exigente, sob o rolo
compressor da luta pelas audiências, em condições de produção dos media tantas vezes degradadas, talvez seja
mais honesto admitir a probabilidade de aceitar fazê-lo, com o compromisso
implícito de tentar observar o maior escrúpulo ético possível – «Se não for eu,
alguém o fará…».
O
problema é que tais desafios não trazem manual de instruções. Mas talvez seja
prudente buscar amparo na reflexão colectiva (entre camaradas com responsabilidades,
experiências e mundividências diversas, incluindo os conselhos de redacção) e
não desdenhar o arrimo da dúvida.
Publicado em Abril Abril