Guterres e o consenso indiscutível
A capa do último número da revista Visão (13 de Outubro), dominada pela imagem do antigo
primeiro-ministro António Guterres e pelo desenho de um enorme coração, promete
«73 razões para celebrar Portugal com orgulho». No interior, o tema arranca com
o título expressivo «Orgulhosamente nós» e com a afirmação «A conquista de
António Guterres insuflou o nosso orgulho nacional».
Fixemos: «Insuflou o nosso orgulho». Presume-se que se trata
do orgulho de todos, jornalistas incluídos, abrangidos num enorme arco de
júbilo, na inequívoca sinalização de um consenso indiscutível em torno da
eleição de António Guterres para o cargo de secretário-geral da Organização das
Nações Unidas (ONU), erigida desígnio nacional e motivo de celebração
patriótica da qual os Media se tornaram promotores e oficiantes entusiasmados.
Não restam dúvidas de que a escolha de Guterres – pela
primeira vez na história da ONU num processo apresentado como transparente e no
qual foi possível conhecer antecipadamente quem eram e ao que vinham os
candidatos – constitui uma vitória inquestionável do próprio e da diplomacia
portuguesa.
Também não está em causa o mérito do candidato português num
processo, aliás longo e razoavelmente escrutinado, no qual foi sempre o mais
votado, sendo recomendado por aclamação pelo Conselho de Segurança e eleito por
aclamação pela Assembleia Geral da ONU.
O que é interessante observar é o discurso jornalístico
sobre o processo, mas sobretudo sobre o candidato, e depois sobre o eleito, quase
glorificado como personagem imaculada, numa narrativa frequentemente de aplauso
acrítico e assumindo a nomeação para o cargo como causa nacional da qual os
Media se tornaram porta-estandartes.
«Ganhamos todos», titulou, em grande manchete, o Público de 6 de Outubro, numa síntese dessa
espécie de imperativo patriótico – de resto assumido pelo próprio jornal em
editorial – ao qual a generalidade dos meios de informação não se coibiu de
aderir com grande entusiasmo e reduzida capacidade de recuo crítico (e, nalguns
casos, até deontológico…).
Ao vestir a camisola da selecção Guterres, privilegiando a
biografia virtuosa e arriscando as obrigações de neutralidade, os Media
deixaram a descoberto a sua dificuldade em lidar, com absoluta imparcialidade,
com a entronização internacional de personalidades ou com a realização de
«feitos» colectivos nacionais nas arenas internacionais (veja-se o Futebol, por
exemplo).
(Significativamente, os Media também não deixaram de
evidenciar a incapacidade para tratar com rigor as contrariedades que punham em
causa o desígnio nacional. É o caso do surgimento da candidata de última hora, a búlgara Kristalina
Georgieva, que alguns órgãos de informação classificaram como «a principal
adversária de António Guterres», sem nunca explicarem as razões de tal
favoritismo… )
Nessa euforia nacional quase febril que acomete as
redacções, sobra pouco espaço para um distanciamento reflexivo, para a
introdução de elementos de análise que, não tendo necessariamente de ser
dissonantes (e muito menos hostis), contribuam para repor algum equilíbrio no
enunciado a ponderar pelos leitores, pelos espectadores e pelos ouvintes.
Não é que tal atitude seja deliberada, com o intuito de
ocultar defeitos e pecados, ou tendencioso, com o objetivo de silenciar
características negativas da personalidade e carregar na tinta do
enaltecimento.
Mas é um facto que o discurso jornalístico no que tange a
este tipo de acontecimentos tende mais a evitar rupturas com o consenso do que
a perturbar a celebração consensual, mesmo quando seria útil e necessário ter
em conta dados de importância central para um juízo sério sobre as capacidades
para o exercício das funções para as quais o eleito foi escolhido.
Nos três dias correspondentes ao pico do processo de escolha
de António Guterres pelo Conselho de Segurança da ONU (5, 6 e 7 de Outubro), os
cinco jornais diários generalistas portugueses, a que acresceram os dois
semanários publicados no dia 8, publicaram um total de 240 entradas de texto
sobre o assunto. Apenas 17 continham aquilo que, por simplificação, poderemos
designar menções desfavoráveis.
No essencial, e num tom benévolo e até desculpabilizador, as
17 unidades analisadas referiam-se à derrota eleitoral do Partido Socialista
nas autárquicas de 2001 e ao risco do «pântano» (oito); ao caso do «orçamento
limiano» (três); ao «falhanço» na governação no segundo mandato (duas); às «conspirações
no sótão» na luta pelo poder no PS (duas); à famosa «gafe do PIB» (uma); do
acordo com o PSD de Marcelo Rebelo de Sousa para o primeiro referendo sobre a
interrupção voluntária da gravidez (uma); e à análise depreciativa, em The Wall Street Journal sobre a gestão no
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
Nada que mexesse no essencial que importava problematizar,
portanto.
Ao comentar a eleição de Guterres, o editorial do AbrilAbril do dia 7 de Outubro,
foi ao ponto essencial, esperando que no mandato do secretário-geral agora
eleito «predomine uma postura que possa
desmentir opções e decisões que, enquanto primeiro-ministro de Portugal,
assumiu, de envolvimento de tropas portuguesas na coligação que interveio
militarmente na República da Jugoslávia, sob a hegemonia da NATO e dos EUA,
e à revelia do Conselho de Segurança da ONU».
No conjunto de 240 entradas de textos analisadas, o tema das
tropas portuguesas nos Balcãs surge apenas em duas (Publico, na edição do dia 5, e Diário
de Notícias, na edição do dia 7), mas em nenhuma delas como apreciação
negativa da conduta de António Guterres e muito menos responsabilizando-o pelo
envolvimento de Portugal numa intervenção ilegítima da NATO e sem qualquer
mandato da organização de qual será secretário-geral a partir de 1 de Janeiro
de 2017.
Discutir esse tema significaria também pôr em causa o pacato
consenso que os Media mantêm sobre assuntos como a natureza e a legitimidade
das intervenções militares dos Estados Unidos, da NATO e das potências
europeias suas aliadas e das «coligações» de geografia e interesses variáveis –
da Jugoslávia à Líbia, do Iraque e da Síria ao Iémen…
Mas é justo referir que o jornal i (edição de 6 de Outubro) foi o único a citar, de uma declaração
do dirigente do Partido Comunista Português Ângelo Alves à agência Lusa, a
afirmação de que o próximo secretário-geral das Nações Unidas – esse mesmo
António Guterres – deverá «contrariar aquilo que tem sido, infelizmente, uma
linha de instrumentalização da ONU, nomeadamente pelas maiores potências
ocidentais e, nomeadamente, as potências da NATO».
Passada
a euforia, e tendo em conta os desafios «num momento em que um conjunto de
acontecimentos releva da importância da defesa dos princípios da Carta das
Nações Unidas» (ainda Ângelo Alves, no Jornal
de Notícias de 6 de Outubro), os Media portugueses estão chamados a mostrar
que a eleição de Guterres exige mais deles. Agora é que vamos confirmar se o
brio patriótico tolda mesmo o espírito crítico.
(Publicado hoje em AbrilAbril)
(Publicado hoje em AbrilAbril)