Convenientes narrativas de terror
No
dia 1 deste mês, vários órgãos de informação portugueses repercutiram, nas respectivas
edições em linha, uma notícia do diário espanhol El Mundo[1], segundo a qual o auto-proclamado Estado Islâmico (EI) publicara,
em Junho, nas redes sociais, um anúncio para o recrutamento de tradutores de
Português e de Castelhano, entre outras informações, designadamente sobre os
alegados «progressos» e as «ameaças» do EI.
Entre
as participações nas caixas de comentários avultam, além de recorrentes
manifestações de xenofobia, intolerância e de inspirações «humorísticas» mais
ou menos forçadas, reações muito críticas de leitores.
«Esta
notícia é direcionada para aqueles que não tenham tido conhecimento do
recrutamento ficarem a saber!», comenta um leitor do Diário de Notícias[2]. Outra leitora pergunta se
«o DN pode ser processado por apoio ao terrorismo», questionando se tal
informação é notícia «só porque o El
Mundo também faz», concluindo: «Que falta de sentido ético! Que falta de
sensibilidade! Que estupidez!»
«Valha-me
Deus!! Isto é notícia ou estão vocês a receber as candidaturas? Sinceramente ao
que chega o nosso jornalismo!», indignou-se um internauta no sítio da Rádio
Renascença[3]. «Não querem divulgar mais
os desejos do daesh? Assim, sempre desempenhavam melhor o papel de os ajudar!»,
questionou outro. E um terceiro protestou: «Esta é a tal notícia que não devia
ser!»
Justamente nos dias anteriores
crescera, nomeadamente em França, um interessante debate entre intelectuais e
responsáveis editoriais sobre o que e como noticiar os acontecimentos – publicar
ou não a identificação e as biografias dos implicados em actos violentos
atribuídos ou reivindicados por aquele ou outros grupos. Objectivo: evitar a
glorificação dos autores e procurar neutralizar o seu protagonismo pelo maior
anonimato possível.
As citadas contribuições dos
internautas, centradas no evidente risco de transformar os Media em
instrumentos de propaganda e mesmo da legitimação desta, colocam em discussão
um problema central – o da responsabilidade ética dos jornalistas na
ponderação, selecção, hierarquização, valorização, difusão e avaliação dos
efeitos da publicação de factos susceptíveis de serem notícia.
Muitas questões podem e devem ser equacionadas.
Três exemplos:
- Até que ponto a divulgação de
informações como aquela serve os interesses da propaganda do terror,
instrumentalizando os meios de comunicação social e legitimando a «comunicação
terrorista»?
- Ou, por outro lado, até que ponto o
fluxo quase contínuo de certas “informações”, distribuído através de Media
«credíveis» mas que os jornalistas não conseguem confirmar e contrastar em
tempo útil, serve interesses obscuros de qualquer um dos lados?
- Ou, ainda, será que os Media estão a
ser manipulados na disseminação de mensagens tendentes a criar uma atmosfera
cívica permeável a um discurso da demagogia securitária levando os cidadãos a
aceitar acriticamente uma soma muito preocupante de restrições às suas
liberdades – ou as dos jornalistas?
Um comunicado recente do Sindicato
Nacional dos Jornalistas Franceses, significativamente intitulado «Prolongamento
do estado de urgência e informação: uma deriva inquietante»[4], colocava em evidência
dois problemas:
- Os efeitos deletérios sobre a liberdade
de informação, limitando a capacidade dos repórteres que investigam o
terrorismo, ou mesmo de as condições em que vivem os cidadãos da «segunda zona»
;
- E o enquadramento da prorrogação do
estado de emergência por declarações belicistas do Presidente da República e do
primeiro-ministro, retomadas por numerosos eleitos, tanto da esquerda como da
direita.
Uma leitura atenta da torrente de
notícias (umas instantâneas, nos directos, outras que deveriam ser mais
ponderadas com tempo de recuo mais razoável) sobre os acontecimentos violentos
do último mês fornece material suficiente para uma reflexão sobre riscos muito
graves, que os cidadãos já enfrentam de facto e que já não são mero produto de
elaborações teóricas prospectivas.
Há sérias razões para recear que os
Media, «legitimados» em fontes oficiais que propagam toda a sorte de
informações à velocidade vertiginosa do twitter, ou escorados em
«especialistas» que debitam opiniões apressadas, em directo ou em diferido, estão
a alimentar uma espécie de síndrome de «Pedro e o Lobo», atribuindo de imediato
origem «terrorista» a actos que não revestiam de facto tal natureza.
Ou, pior, estão a gerar uma ampla
convicção de verosimilhança, reconhecendo em todos os actos violentos a
probabilidade de serem, ou de poderem ter sido, de natureza terrorista, por
muito que escasseiam evidências factuais – escrutináveis pelos jornalistas e/ou
por fontes independentes (e aqui bate o ponto…) – sobre tal natureza e a
motivação reais desses acontecimentos.
Um bom exemplo para discutir essas
hipóteses e a atitude pouco cuidada dos Media é o caso do ataque num centro
comercial em Munique, Alemanha, em 22 de julho, perpetrado por um jovem
germano-iraniano de 18 anos, que abateu a tiro nove pessoas e acabou por
suicidar-se.
Vítima da vertigem imediatista
transformada em combustível da ingovernável nave mediática, a generalidade da
comunicação social instantânea (televisões e rádios e jornais em linha «em directo»)
foi incapaz de precaver-se do dilúvio de rumores, informações falsas e
manipulações grosseiras que transbordou do espaço público.
Do número exagerado de atiradores
(inicialmente eram três) e sequestros imaginários em hotéis, à transmissão de
imagens de arquivo com inúmeros mortos em ataques noutros locais há anos, ou de
simulacros de operações policiais ou de socorro, tudo serviu para alimentar e
credibilizar uma conveniente narrativa de terror.
Pode ter servido para acelerar as
audiências e «visitas» do dia, e talvez tenha sido útil a interesses estranhos,
mas não serviu nem os direitos, nem os interesses dos cidadãos, nem o objectivo
da verdade.