Serviço giro de televisão

A RTP1 transmitiu ontem um debate com o ex-presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, e o ex-alto comissário para os refugiados, António Guterres – ambos antigos primeiros-ministros portugueses.
O tema – “Que mundo é este?” – reveste inegável interesse jornalístico, dada a situação preocupante e extremamente complexa em que a Europa e o Mundo se encontram. E os intervenientes, por muito discutível que seja a actuação nomeadamente de Durão Barroso, seriam qualificados para o tratar.
Mas não é esse o ponto. Nem sequer é do conteúdo da iniciativa que cuido de tratar aqui. O ponto são três aspectos simbólicos, aparentemente marginais ao referido debate, mas que não devem ser deixados em claro pelos significados que encerram, pelos sinais que transmitem e pela exigência de transparência que colocam.

Primeiro – a génese e a autoria da iniciativa.
O debate é apresentado como resultado de uma “parceria entre a RTP e a Fundação Francisco Manuel dos Santos” (FFMS), que tem como fundador o empresário Alexandre Soares dos Santos (Grupo Jerónimo Martins), figura frequentemente entrevistada nos meios de informação, especialmente quando toca a enviar mensagens aos governos.
A menos que tenha visto mal, mas não é dito em que consistiu e que objectivos teve essa parceria. Calculo que a FFMS tenha pago o aluguer do Teatro Thalia e demais despesas da RTP com a produção.

Segundo  – questões de imagem e de “marcas”

Detenhamo-nos no painel de fundo. O que vemos? A dominá-lo, a reprodução do título da revista “XXI”, propriedade da FFMS, e cujo director, António José Teixeira, co-interrogou os convidados, partindo aliás do conteúdo do último número da revista. No topo superior direito, o logótipo da própria FFMS.
Tratando-se de uma “parceria”, seria expectável que o painel ostentasse nada menos que os logótipos dos dois parceiros – a RTP e a FFMS.

Terceiro – uma questão de representação institucional
Na reportagem sobre os “bastidores do debate” exibida no “Jornal da Tarde” de hoje imediatamente após a peça sobre o debate de ontem (não sei se emitida noutros serviços anteriores), há dois momentos muito inquietantes.

No primeiro, vemos o presidente do Conselho de Administração da RTP pronunciar-se sobre a iniciativa, pretendendo explicar a sua importância e interesse editoriais; no segundo, a reportagem “apanha” o director de informação, Paulo Dentinho, a fotografar com o seu telemóvel os dois convidados que pousavam para as fotografias de quem quis colher o momento.

Que têm de mal essas minudências?, perguntarão. Muito. Porque há pormenores que são mesmo “pormaiores” e não revestem significados neutros ao nível dos papéis institucionais e simbólicos dos respectivos actores.
O jornalista Paulo Dentinho é nada menos que o director de informação da RTP. Ora, como tal, não lhe cabe apenas – e não é nada pouco! – a responsabilidade pela orientação editorial da RTP, além da responsabilidade naquele programa concreto. É ele quem deve assegurar a representação institucional da RTP sobre matéria editorial.
Por outras, curtas e directas palavras: quem deveria ter prestado declarações à RTP é o director de informação da RTP e não o presidente da Administração.

Resumir, na dita reportagem e à guisa de graçola entre amigos, o papel de Paulo Dentinho nos “bastidores” ao papel de “jornalista que passou a fotógrafo”, pode ser um serviço giro de televisão. Mas não é, seguramente Serviço Público de Televisão.
. 

Mensagens populares deste blogue

Jornalismo: 43 anos e depois

O serviço público de televisão e a destruição da barragem de Kakhovka: mais rigor, s.f.f.

O caso Rubiales/Jenni Hermoso: Era simples, não é?