Sobre o jornalismo, a memória e o resto
Tomo a liberdade de transcrever um belo texto de César Príncipe, no almoço de confraternização do III Encontro Gerações do "Jornal de Notícias":
SOBRE O RUÍDO DE FUNDO
Entrei
nas páginas dos diários em 1960 (Diário de Lisboa/Suplemento Juvenil). Um
latino socorrer-se-ia da vulgata In illo
tempore. Um português do vulgo coçaria a cabeça: Foda-se! Há que tempos! Um coronel do Antigo Regime interpelaria
uma ordenança do Novo Regime: O gajo
resistiu ao lápis? Ainda escreve? Não o tenho visto. Nem sequer na Necrologia. Vos
digo: não fujo ao In illo na
construção do presente. Arreigadamente. Serenamente. Com eterna nostalgia e
fraterna rebelião. Numa fortaleza fixa (de papel), extensão da fortaleza móvel
(cibernáutica). Sou um combatente todo-o-terreno. À superfície da Terra.
Sê-lo-ei debaixo da terra.
Há que tempos!
Entrei nas
páginas dos jornais quando as máquinas de escrever falavam. Na altura, além dos
animais, também os jornalistas falavam. Além disso, escreviam, discutiam,
zangavam-se, conversavam, contavam anedotas. Quase sempre em voz alta. As
direcções e as chefias (pelo menos, algumas) participavam no frenesim do
nascimento quotidiano do jornal. Os colaboradores, os tipógrafos, os
administrativos, os motoristas, os contínuos também integravam a sinfónica. A
Redacção era um campo aberto, de fogo cruzado. Comecei a aprender que era
essencial ter boca para escre(ver). Descobri que falar era pensar alto e
redundava num expresso compromisso. Com a Redacção, a Sociedade, a Cultura, a
Língua, a Civilização. Consequentemente, prenúncio de acção. Lúcida e
determinada. Liberta e libertadora. Mas o matraqueado da máquina de escrever
ficou como marcador ambiental. A Redacção assemelhava-se, a certas horas de
ponta, a um pavilhão fabril e febril, a um concerto de teclados. Não é que
tenha saudades das velhas máquinas.
Digo-vos.
Tenho saudades do ruído de fundo.
Ouvi dizer que
a mordaça de alta tecnologia e baixa ideologia se impôs, pouco a pouco, de Sul
para Norte. Os computadores não falam. Já se sabia. São perigosíssimos.
Ardilosos. Como certas doenças. E os jornalistas? Pouco falam ou falam de
insignificâncias ou do importante para o business.
Não é de agora, não é. Mas o mal alastrou. Agudizou-se. Foi duro saber e
confirmar. Dizem-me que bem-pensar é o que está dito, que contra-agir é
interdito. Também consta que os leitores dão mostras de impaciência com a
quietude ou a insonorização dos teclados. A voz da rua não reconhece o produto como seu. Já ninguém diz o meu jornal, o nosso jornal, a não ser algum accionista, governante ou
banqueiro. Sei lá: algum publicitário de açaimos ou algum pajem de Anfitrião ou
de call center da Nova Mocidade
Portuguesa. Sei lá: um dos que confundem Imprensa com empresa ou central de
fretes, Rádio com amplificador de feirante ou festivaleiro, Televisão com
escola de massas neerdenthalizadas, narcotizadas com spray de écran.
Sei lá. Isto
é: bem sei. Sei lá: bem avisei.
Convidaram-me
a visitar uma PLM/Plataforma Logística Multimédia. Hesitei. Juraram-me que era
uma antiga redacção. Objectei. Já sabia que os computadores trabalhavam pela
calada. Preveniram-me que os jornalistas cerravam os lábios por causa da gripe
NC/Nova Censura, que afecta sobremaneira a classe desde que o poder das
redacções foi esvaziado na Lei de Imprensa; desde que privatizaram, rapidamente
e em força, o Sector de Comunicação Social Público; desde que iniciaram a
limpeza da geração das conquistas democráticas, propondo rescisões amigáveis e apertando a grelha cívica das admissões;
desde que as entidades patronais deixaram cair o princípio de negociação; desde
que se concedeu Carteira Profissional a todos os que assinavam o nome e juravam
fidelidade aos Donos Disto Tudo; desde que encerraram a Caixa de Previdência,
mandando os beneficiários e os seus descontos para as urgências do adiamento e
do caos, os corredores da vida ou morte lenta.
Sinto a falta
de ruído. A minha última máquina foi uma Messa. Se a interrogarem, fará saltar
a tecla C: este tipo é Camarada. Se
fizerem a mesma pergunta a um computador, também é capaz de fazer saltar a
tecla C: este tipo é Chip. É certo
que sempre houve de tudo. Nas farmácias dos espíritos como nas farmácias dos
corpos. É certo que também hoje há profissionais competentes, criativos,
combativos e honrados.
Quantos?
E onde?
Marquemos
encontros de gerações.
Um viril
plenário contra o silêncio.
CÉSAR
PRÍNCIPE
III Encontro de Gerações JN, Coimbra (O Cantinho dos Reis), 31/10/2015