Ainda sobre Richard Gere sem-abrigo: o método e a causa

Foto retirada, com a devida vénia, da versão em linha do "New York Post"

Retomo, com uma correcção e algumas reflexões, o assunto da postagem imediatamente anterior a esta.
Ao ler a notícia da edição em linha do JN, aliás nela partilhada, depreendi que, com o objectivo de preparar-se o papel de sem-abrigo, o actor Richard Gere fizera um período de observação no terreno limitando-se a simular ser um deles durante uns dias, em vez de um trabalho de observação mais rigoroso e de estudo do problema.
Espicaçado pelo António Campos Leal, fui procurar informar-me melhor, isto é, indo além da notícia partilhada, tendo encontrado um conjunto de notícias – umas mais recentes do que outras – que permitem esclarecer um dado essencial: em princípio, Richard Gere vestiu a pele de sem-abrigo apenas no decurso das filmagens e não propriamente para preparar-se para elas.
Segundo se depreende de várias notícias, as filmagens ocorreram em contexto real e teriam surpreendido o actor, não só porque as pessoas reais com quem se cruzou não reconheceram no andrajoso vasculhador de contentores de lixo o famoso e rico actor (consta que uma senhora real se apiedou dele e lhe entregou um saco de comida sem o reconhecer), mas também porque, em geral, os transeuntes manifestam grande indiferença pelos sem-abrigo.
Se reconheço ter-me precipitado na crítica ao método de preparação para o desempenho da personagem, verberando o exercício de simulação (do género observador-participante) em vez de um exercício de observação de campo mais distanciado, também me parece que a surpresa de Gere se justifica pelo facto de tal observação prévia não ter existido e, pior, pelo facto de andar pouco atento à vida real.
Um aspecto interessante da breve recolha de notícias sobre o assunto são (i) as contradições sobre as condições da rodagem das cenas de rua e (ii) sobre a real identidade da apiedada senhora que espontaneamente ofereceu o saco de comida.
Umas dizem que foram usadas câmaras ocultas; outras, que os aparelhos estavam discretamente dispostas do outro lado da rua; e outras que muita gente vira as câmaras e se dera conta de filmagens, mas sem reconhecer o actor; e outras ainda, afinal, que há quem tenha reconhecido o actor. Umas, dizem que a senhora era uma turista francesa, cujo nome é aliás mencionado numa legenda; outras, que era uma vendedora de jornais…
Mas a questão central das notícias é todas elas girarem em torno do famoso e multimilionário actor – umas a propósito da rodagem da fita; outras a propósito da estreia e da necessária promoção desta – e do seu súbito despertar para a dura realidade do mundo, tão pungente para Gere que Gere acha que chegou a hora de mudá-lo: “Quando acabei as filmagens, dei comida e cem dólares a todos os sem-abrigo que vi na rua. Eles choraram e ficaram tão gratos”.
Bem me parecia que não há solidariedade grátis.

Fontes:


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