O último comboio



Apanhei o último comboio da noite - e o último das minhas responsabilidades sindicais.
Na despedida, na cerimónia de posse dos novos órgãos do Sindicato dos Jornalistas, disse estas palavras:

Arrumadas que estarão as armas da contenda, comecemos por saudar os eleitos para os órgãos do Sindicato dos Jornalistas no triénio que agora se inicia.
Só temos de desejar os maiores êxitos e que os eleitos se confirmem merecedores da confiança que os associados neles depositaram. 
É enorme e pesada a tarefa a que deitam agora ombros. Que a fortuna não os desampare; e que a classe não lhes negue ajuda, nem regateie solidariedade, nem se furte ao combate. 
Mas permitam-me que saúde de um modo muito especial todas e todos os camaradas da longa jornada que chega hoje a esta meta. 
Estivemos onde foi necessária a nossa acção e onde era requerida a força das nossas convicções - nas redacções onde se ofendiam direitos laborais, e nos locais onde se impedia o acesso à informação; nas salas da negociação e nas tribunas da denúncia; nos salões dos poderes e na luta nas redacções e nas ruas; em árdua defesa por direitos e na reiterada pedagogia dos deveres.
Não declinámos a agenda mais incómoda nem malbaratamos os créditos de um Sindicato que tem uma missão e um mandato muito claros: defender o jornalismo e os jornalistas, lutar pela liberdade de imprensa e contra todos os constrangimentos.
Carreiras dignas e salários justos, direito ao trabalho e luta contra as precariedades, direitos de autor, direito de acesso à informação, protecção do sigilo profissional e da confidencialidade das fontes de informação, garantia de diversidade e pluralismo e direito dos cidadãos a uma informação de qualidade, defesa e valorização dos serviços públicos de rádio, televisão e agência noticiosa foram os grandes temas permanentemente na ordem do dia, nesse labor constante.
Para todas essas tarefas e missões, de resto abundantemente documentadas, foram muitos os que deram o melhor de si, sacrificando tanto tempo das suas vidas pessoais e profissionais, sacrificando tantas vezes a sua saúde e enfrentando com frequência incompreensões, preconceitos e mesmo a indiferença.
A indiferença é o pior e o mais tenaz inimigo dos jornalistas e da sua organização de classe.

É justo dirigir também uma palavra de gratidão ao excelente corpo de funcionários do Sindicato. Sem a sua lealdade, dedicação exemplar, capacidade de entrega e imensa generosidade, muito do que somos e muito do que fazemos não teria sido possível e esta casa estaria resumida a um espaço sem alma nem futuro.

O Sindicato dos Jornalistas completou já 80 anos de existência – metade sob ditadura; outro tanto em liberdade.
Celebremos dele o que de melhor podemos celebrar: a sua extraordinária reserva de diversidade, que é um valor primordial numa organização de jornalistas, reflectindo a imensa variedade de pontos de vista, de experiências, de mundividências e de propostas.
Nas organizações democráticas, como o é o nosso Sindicato, a divergência faz mais falta dentro do que fora. Por contraditório que pareça, a divergência é um factor essencial de unidade.
Quando se inicia um novo ciclo, é natural a tentação de romper com o passado, com as práticas e com as opções depostas pela legitimidade do sufrágio, e de inaugurar um estilo novo, de instalar uma praxis diferente, de rasgar novos caminhos e, enfim, de dar corpo a um programa novo.
É avisado, porém, não descurar o imenso e inigualável património de reflexão e de produção sobre os mais variados temas - da área laboral ao direito da comunicação, da acção político-sindical às questões mais sensíveis da deontologia profissional, da protecção do sigilo como condição imprescritível da liberdade ao indeclinável dever de defesa do direito ao bom nome, à honra e à dignidade, da defesa do valor sagrado do direito ao trabalho à assumpção plena de todos os deveres profissionais e deontológicos.
Apesar de desaires e frustrações, também não podemos desvalorizar o imenso acervo de lutas e de conquistas, entre as quais destaco o significativo corpo de direitos que conseguimos manter com denodado afinco nos vários instrumentos de regulamentação colectiva; o reconhecimento dos direitos de autor dos jornalistas; o regime legal de protecção do sigilo profissional e da confidencialidade das fontes de informação; as centenas de jornalistas em situação precária que foi possível colocar nos quadros; muitos outros cujo despedimento impedimos; e as centenas de outros ainda cujo despedimento não foi possível evitar, mas para os quais se conseguiu melhorar pelo menos um pouco as condições.

Não são fáceis os tempos que temos pela frente. E enormes são os desafios e os escolhos – não necessariamente novos – que os órgãos do nosso Sindicato agora empossados, e especialmente a Direcção, terão de enfrentar.
Permitam-me que sumarie alguns essenciais:
Em primeiro lugar, o prolongado e sistemático cerco de silêncio que há anos sitia o nosso Sindicato na insignificância mediática. Muito do que pensamos, propomos, fazemos e reclamamos não tem eco nos jornais, nas rádios, nas televisões, na própria agência de notícias, que é consabida mãe de todas as redacções.
Não sabemos se é censura ou indiferença generalizada dos órgãos de comunicação social, ou se um estranho e inexplicável critério editorial – e um critério editorial é sempre uma boa desculpa para uma omissão, mesmo quando a omissão é reiterada – mas não temos dúvidas quanto aos prejuízos para os jornalistas e para os cidadãos.
Não admira que, neste contexto de sonegação, certa elite editorial, mas infelizmente também muitos jornalistas, perorem com facilidade infantil sobre a alegada inactividade e a proclamada ineficácia e inutilidade do Sindicato. O mecanismo é simples: primeiro, silenciam-nos; depois, decretam-nos a morte. É pena que nenhum jornalista se inquiete com isto.
Não nos queixemos, porém. A informação sobre a actividade sindical em geral, quanto às actividades, iniciativas, propostas e realizações dos sindicatos há muito foi praticamente banida das páginas dos jornais e dos espaços de rádio e de televisão.
Alguém me explicava em tempos, para justificar a extinção das velhas secções de Trabalho e Sindicalismo, que sempre é preferível colocar a informação laboral nas secções e páginas de Economia, porque, feitas as contas, a Economia é feita de Trabalho e de Capital.Mas, refeitas as contas, parece que o Trabalho se perdeu a caminho da gráfica e o que conta é o Capital. 
Não se suponha que estas coisas são obra do acaso, nem nos admiremos que a novel batalha ideológica pelo conformismo e pelas inevitabilidades esteja a ser ganha também através do sistema de comunicação de massas, de muita opção editorial – e de muita opinião editorial – consciente.
É aqui que convém falar do segundo obstáculo. O sindicalismo actual não enfrenta apenas as graves vicissitudes impostas pelas várias formas de precariedade que geram o medo e criam dificuldades à organização, ao recrutamento de quadros e activistas, a organização da luta e da resistência.
Há um adversário poderoso, que actua em inúmeras frentes e possui imensos recursos, que semeia a desinformação sobre os sindicatos, as suas propostas e os fundamentos das suas lutas, que alimenta o preconceito contra a organização democrática dos trabalhadores e pretende apresentar como anacrónicas e desajustadas inúmeras conquistas que custaram dezenas ou séculos a alcançar à custa da prisão, da tortura e da morte de tantos militantes operários – um horário de trabalho decente, direito ao descanso e à vida familiar, salário justo e pagamento do trabalho suplementar, férias e respectivo subsídio, saúde, higiene e segurança no trabalho.
Para não maçar-vos mais, apenas um terceiro desafio: o da verdadeira identidade profissional do jornalista.
São evidentes e são inegáveis as profundas e dramáticas transformações técnicas, tecnológicas e organizacionais ocorridas nos últimos anos, a um ritmo que nenhum de nós, nem o mais pessimista alguma vez imaginou, com reflexos inevitáveis na vida de todos os cidadãos e especialmente na vida dos jornalistas.
A pretexto dessas transformações – e mormente das novas formas de recolher, tratar e distribuição informação – não faltam elaborações sobre cenários de transformação da profissão e de verdadeira transmutação do jornalista, do ponto de vista das respectivas competências técnicas, da organização do seu trabalho, da distribuição e monetização das suas criações, das repartição das mais-valias que gera e essencialmente do respectivo perfil profissional.
Não sabemos ainda para que caminhos mais ou menos incertos nos conduzirão certas derivas que se anunciam – algumas sem qualquer pudor – nem que opções estarão os jornalistas capazes de tomar. 
Mas jamais os jornalistas poderão renunciar a um irrevogável, impreterível e indeclinável dever: o de se manterem no centro do processo de recolha, selecção, tratamento e difusão de informação, assumindo-se de corpo inteiro como mediadores junto dos cidadãos, que são os definitivos derradeiros titulares do direito a uma informação plural, livre, honesta, comprometida com a verdade.
Ou, então, o Jornalismo morrerá.
Disse.

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