Processo Casa Pia: um caso paradigmático

O Comunicado sobre o processo Casa Pia do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas na íntegra:

A cobertura jornalística do caso Casa Pia é, desde a sua origem, paradigmática do pior que se faz em jornalismo. É uma cobertura que questiona a quase ou mesmo a totalidade dos princípios do Código Deontológico.
Constitui exemplo de equívocos vários relativos, designadamente, à investigação jornalística, à relação com as fontes, à confidencialidade, à presunção da inocência, ao tratamento discriminatório, à recolha de declarações e imagens e ao estatuto de independência.
São bastos os exemplos em que a competência jornalística está ausentes nas peças. Em muitos casos a função de jornalista foi postergada e cedeu lugar ao exercício de mediação de mensagens. Nessas práticas está ausente demasiadas vezes a interpretação, a comprovação e a verificação dos factos.
Seria estultícia negar a responsabilidade individual de jornalistas. Mas também seria inépcia ignorar que há factores que carreiam os modelos de comunicação que configuram essas coberturas jornalísticas.
A tematização e dramatização dos casos, a concorrência desenfreada e frequentemente inescrupulosa, a confiscação de audiências captadas pelo espectáculo, a abdicação de princípios básicos justificada pela urgência do fecho constituem traços de práticas empresariais e de direcção que afectam, ofendem e desacreditam a profissão.
A cobertura do desfecho do processo Casa Pia não destoou do tom que alimentou anos de comunicação baseada na ausência de uma informação investigada, isenta, equilibrada e credível.
Dois aspectos perpassam esse tipo informativo: uma prática ilusória de verdade justiceira, que funciona tanto para condenar como para absolver os mesmos arguidos, e uma prática redutora da expressão das partes com interesse no caso, o chamado contraditório, que ignorou e se serviu sempre das vítimas apenas como pretexto noticioso.
Quaisquer destas práticas são alheias aos valores éticos e deontológicos da profissão e exemplificam os efeitos da instrumentalização do jornalismo, da ausência de participação dos jornalistas na orientação editorial dos meios e da falta de perspectiva crítica sobre o trabalho editado.
Alguns dos directos televisivos e radiofónicos no decurso da leitura da sentença e os debates emitidos no rescaldo das condenações constituem peças exemplares que servem para demonstrar o que não é jornalismo.
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas exorta todos os jornalistas a reflectirem sobre o trabalho que todos produzimos e a integrarmos como prática dois juízos, um crítico e outro deontológico, que validem a actividade profissional de cada um.
Apela também às instituições que regulam as empresas de comunicação social ou que as representam que suscitem, no quadro das suas competências, o debate e a reflexão sobre a observância dos estatutos editoriais e sobre as causas que condicionam a criação e funcionamento dos conselhos de redacção.
Não basta quebrar o silêncio, é também necessário agir. E não basta estudar a realidade se nada for feito para a melhorar.
Lisboa, 17 de Setembro de 2010
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas
Pode ser encontrado aqui.
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